8.5.08

NÓS E A REVOLUÇÃO (20)

O ano de 1969 não começara bem. Desde o início do mês de janeiro, sentia algo estranho no ar. Uma coisa esquisita. Se eu dissesse isso a meus amigos “marxistas”, certamente me indagariam: estás virando “metafísico”, Jatobá?
Naquele dia 18 de março, acordei com uma sensação estranha. Precisava estudar uma disciplina relacionada à Hidráulica, cujo conteúdo era pesadíssimo para meu raciocínio. Mas a vontade era não ir para a ETFPE. Ir não ir? Eis o meu conflito... Eliminei-o depois de um certo tempo.
Resolvi pegar o ônibus, logo de manhã, para ir `a Escola, onde estudaria na Biblioteca imensa lá existente. Tentaria entender aquela coisa de vasos comunicantes e da potência de uma bomba hidráulica.
No ônibus em que viajei, naquela manhã, um popular ligou um imenso rádio de pilha. A música que estava tocando era uma italiana, que começava a fazer sucesso: “Zíngara”. Ao ouví-la, senti um estranho arrepio. Desci perto do Derby e me encaminhei para a ETFPE. A música não saía da minha mente. Incomodava-me, não sei o motivo. Queria livrar-me daquela melodia e não conseguia.
Ao passar quase em frente à Casa do Estudante de Pernambuco, encontrei um colega, meio triste. Tentei tirar uma brincadeira boba com ele, mas vi que algo o impedia de sorrir. Encerrou a minha tentativa e foi logo dizendo-me:
- Jatobá, “tás” sabendo da novidade?
- Não? Que novidade?- perguntei-lhe com preocupação.
- Rapaz, Marcos Valença morreu!- Disse-me com um ar de desolação.
- Como é? Que brincadeira é essa...? Indaguei incrédulo.
- O enterro é hoje à tarde, lá no Cemitério de Santa Amaro. O velório é lá- orientou-me.
Arrasei-me. Fiquei desconsertado. Não sabia o que dizer, o que pensar, para onde ir, o que fazer...? O colega despediu-se de mim e continuou indo em direção à Praça do Derby.
Entrei na ETFPE e confirmei a trágica notícia com outras pessoas. E a música terrível continuava a perturbar-me a mente. Os versos iniciais se repetiam, com uma freqüência irritante:
“ Prendi questa mano, Zíngara
Dimi pure Che destino avró
Parla Del mio amore
Io no há paura...”
Fui para o campo de futebol, onde, quase um ano antes, ouvi de Marcos o seu proselitismo socialista. Ali conversamos algumas vezes sobre os destinos da humanidade. Ali, enquanto muitos jovens corriam, loucamente, atrás de uma bola, nós falávamos de conflitos sociais, poder, governo, socialismo, lutas estudantis. Ali aprendi com ele a gostar de literatura. Ali conheci Jorge Amado.
Agora um silêncio. Ninguém jogava bola. Nas árvores, algumas sabiás entoavam um canto triste, um réquiem, talvez .
Sentei-me, baixei a cabeça. Foi impossível conter as lágrimas. Um choro solitário significava, naquele momento, o desaguar de uma tristeza profunda. Perdia um amigo, alguém que havia me despertado para o mundo...
De novo, os versos da canção fatídica:
“Prendi questa mano, Zíngara
Dimi pure Che destino avró
Parla del mio amore
Io no há paura...”
Não troquei uma palavra com ninguém. Dirigi-me à Biblioteca, inutilmente... Quem conseguiria, naquele estado, entender a mecânica dos flúidos?
A última vez que tinha me defrontado com uma perda assim foi quando meu pai falecera, três anos antes. Sensação terrível essa de ficar órfão. As cenas são sempre as mesmas, universalmente: o velório, a hora de fechar o caixão, as inúteis palavras de consolo dos amigos e até de desconhecidos que cumprem, meramente, um “dever “ social de “dar os pêsames”, o desespero da perda. Alguém ali despede-se da vida. Nunca mais será visto. Subitamente vira passado e só! E será, muito em breve, esquecido.
Nunca havia ido ao Cemitério de Santo Amaro. Nem mesmo sabia onde era. Procurei orientação de como chegar lá e fui dar adeus ao amigo.
Muitos jovens do Movimento estudantil estavam no pátio onde o velório se processava. Alguns que, inclusive, estavam sendo procurados. Além desses jovens, também se encontravam umas figuras desconhecidas, com óculos pesados e escuros, de paletó e gravatá. Não eram, obviamente, do movimento. Estavam ali observando as pessoas, enquanto a dor da perda nos consumia. Foram até aquele local a serviço...
Não sabia mesmo o que havia causado aquela tragédia. O que teria tirado de cena aquele jovem tão inteligente, aparentemente saudável e, acima de tudo, idealista?
Uma crise de apêndice, coisa tão corriqueira na prática médica há tanto tempo, transformara-se numa septicemia e, portanto, em infecção generalizada. Seus últimos momentos foram de sofrimento indescritível. Sua lucidez fora afetada por imposição das bactérias que insistiam em destruir um cérebro tão privilegiado como aquele. Bactérias insignificantes, minúsculas e até invisível à vista desarmada consumiam alguém que poderia ter dado uma grande contribuição ao país. Os delírios insuportáveis transformaram-no um ser alienado, enquanto a infecção avançava impiedosamente.
Todos nós estávamos ali incrédulos. Talvez tudo aquilo fosse apenas um pesadelo ou um delírio coletivo. Marcos, ali deitado, imóvel, com um ar de desespero e pálido, de súbito levantaria, tiraria uma de suas brincadeiras, ficaríamos surpresos e depois daríamos uma gargalhada... Era tudo um sonho com final feliz.
Se fosse um sonho seria dantesco...
Ramirez, meio reservado , mostrava-se passado com aquela fatalidade, mas sempre com algumas pessoas por perto. Mais tarde soube, que estavam querendo prendê-lo no cemitério. Teria sido terrível se isso acontecesse numa cerimônia do adeus tão doída. Respeitaram o peso do momento...
Enfiaram o caixão naquele espaço estreito da catacumba, que havia sido construída fazia pouco tempo. Pacientemente, dois coveiros, já acostumados demais com a dor alheia da perda, colocavam pacientemente tijolo por tijolo, com uma argamassa de cimento, sem que sobrasse espaço nenhum. Assisti quieto `a cerimônia. O silêncio era total. De repente, tudo fechado, nenhum espaço vazio, por menor que fosse. A escuridão...
O coveiro pegou um pedaço de madeira e colocou o seguinte: M.V- 18/3/1969.
Marcos Valença repousava ali, reduzido às iniciais M.V e a uma data. Logo, em poucos anos, outro ser humano ocuparia aquele mesmo espaço. E depois outro e outro...
Caminhei pelo cemitério. Um jambeiro do Pará floria. Pardais faziam um barulho imenso numa mangueira. Três crianças corriam e brincavam e gritavam, por entre catacumbas. Um casal de namorados passeava de mãos dadas.
A vida seguia inexorável... indiferente à minha dor.

- Essa crônica fará parte de um livro que está no prelo .

4.5.08

VIOLÃO MUDO
( Carta enviada a Cláudio Almeida, um excelente violonista e compositor pesqueirense)

Meu Querido amigo e conterrâneo Cláudio Almeida,

A notícia da morte de Eurivinha me foi dada vários dias depois, pelo meu irmão, Luciano. Pouparam-me dessa coisa desagradável que é saber que os nossos estão indo, ninguém sabe mesmo aonde... Na hora que me deram a notícia, minha reação foi aquela frase idiota que sempre dizemos: não é possível!!!!
Eurivinha era meu primo legítimo. Seu pai era um conhecidíssimo e humilde relojoeiro, carinhosamente chamado de "seu Netinho!" Netinho era meu tio. A mãe de Eurivinha era conhecida, em Pesqueira, por adorar fazer serenata- isso numa época em que a mulher era absolutamente "do lar”- pelo vozeirão que possuía e pelo amor à vida e sobretudo à música! Sou, portanto, dessa espécie em extinção, ou seja, de uma família que em vez de viver se autodestruindo por migalhas ou luta pelo poder, se deliciava com encontros musicais que eram feitos, com carinho ,na casa de seu Netinho....
Meu primeiro contato com violão foi através de Eurivinha. Meu pai, Emídio, gostava de patrocinar, entre aspas, a vinda de Eurivinha à Vitória de Santo Antão. Passava dias lá em casa e, geralmente, no final de semana, a festa rolava. Eu, com meus poucos anos de idade, menos de uma dezena, para ser mais preciso, ficava impressionado com aquela agilidade com que Eurivinha, sempre risonho e com uma respiração ofegante, mexia com os dedos nos trastes do violão. Quando havia uma pausa para o almoço, eu corria e tentava , na minha ingenuidade infantil, imitá-lo ao violão... Frustração total! Era impossível. O resultado era que eu mexia na afinação, e quando voltavam para a farra, as cordas estavam desafinadas. Eurivinha me olhava, sorria, e dizia: "Emídio, Vaninho ainda vai tocar violão."
Não deu outra. Aquele violão de Eurivinha me enfeitiçou. E jamais esqueci "Sons de Carrilhões".
Eurivinha foi um grande Violonista, da escola fiel de Dilermando Reis. Encantou as noites pesqueirenses. Mas merecia ter tido um certo destaque. Não o teve. Como não têm os grandes homens que são humildes. E Eurivinha era acima de tudo humilde demais. Morreu pobre, solitário e certamente com profunda melancolia. A solidão da velhice é uma coisa terrível. Antes o suicídio... E´uma morte mais digna! Fruto de uma decisão estabelecida com revolta...
Há uns anos ele esteve aqui no Recife. Ficou comigo uns dias. Falou-me que estava com o colesterol alto. Resolvi ajudá-lo. Fui até o Hospital das Clínicas e consegui, com amigos, um monte de exames para ele. Estavam alteradas as taxas... Mas ele viajou e eu fiquei de enviar uns CDs para ele, mas ele me disse que não mandasse. Eurivinha só tinha "radiola"! Como aquilo me doeu... Pensei em dar um aparelho de CD para ele. O meu tempo corrido, de cidadão e professor de cidade imensa, me impediu essa iniciativa, tão simples. E perdi contato com ele.
Às vezes, quando fazia excursão com meus alunos da UFPE, inventava um "motivo" para entrar em Pesqueira. Aí eu passava na frente da casa dele, na frente da casa de Rinaldo Jatoba, no hospital, que o meu primo e irmão dele, médico ( Genivaldo), morto prematuramente, dirigiu com tanto esmero... na busca de um tempo para sempre perdido. Não pude desfrutar do violão de Eurivinha em noitadas pesqueirenses. Outros, sim, tiveram essa sorte...
Só sei que um violão emudeceu! Os dedos de um violonista ,que para mim foi um dos grandes, estão rígidos, imóveis.... Que acordes sairão agora daquelas mãos frias, calmas e mortas? Em que espaço estarão os "Sons de Carrilhões", as valsas, os choros ... que sairam daquelas mãos ágeis e do violão humilde?
Talvez haja uma nova estrela brilhando no céu límpido de uma noite pesqueirense. Talvez algum velho boêmio , solitário, amante da boa míusica, resolva cantar um samba-canção, do desespero dos abandonados, num banco da Praça de Santa Águeda.... Talvez, o violão mudo transforme-se em instrumento vivo, e nele os dedos ágeis de Eurivinha, na imaginação dos sensíveis, voltem a compor acordes de Sol maior, Do menor, sem dissonância nenhuma e desperte a cidade, lembrando que é hora de trabalhar, e que a vida segue inexorável... Quem sabe se esses acordes tradicionais e os sons dos bordões não irão também acordar os pássaros ainda existentes nas Matas da serra do Ororobá? Se assim for, teremos na praça um grande coro, com sons celestiais, pássaros e cantos de bêbados retardatários...
Um abraço do amigo e admirador
Lucivânio Jatobá
A DENGUE É JÓIA
Lucivânio Jatobá


A manchete de 1° de maio do Jornal do Commércio me chamou a atenção e me levou a reflexões: “ MAIS MÉDICOS E LEITOS CONTRA A DENGUE”. Embaixo, o “lead” da matéria dizia que “53 médicos, auxiliares de enfermagem e sanitaristas seriam contratados e assumiriam no dia seguinte”.
Cá com meus botões, da minha camisa desbotada, pensei: que “coisa fantástica” essa epidemia anunciada de dengue! Veio a tempo e trazendo empregos para médicos, enfermeiros e sanitaristas! E o desemprego, no Brasil, não está nada controlado.... E´ um monstro que cresce toda manhã...
Continuei com minhas reflexões caboclas, de cidadão idiota.
Mais dengue, mais emprego, mas também muito mais coisas: mais propagandas caríssimas nas TVs e emissoras de rádio ( sim, as emissoras que quiserem divulgar gratuitamente vinhetas que possam reduzir a epidemia não servem...), mais estudos ( inúteis) acadêmicos, mais repelentes, superfaturados, comprados, em regime de emergência ( afinal a “saúde popular” não pode esperar), mais campanhas publicitárias, utilizando os antigos ( mas atualmente caros) panfletos, mais reuniões de assessores, que serão pagos com gordos “pro-labore” etc e tal .
Sim, e a indústria farmacêutica lucrará muito, coisa da lei da oferta e da procura : mais paracetamol será comprado, mais cloro será vendido, mais vitamina C , mais muitas outras substâncias químicas serão adquiridas pelas secretarias de governo, nos vários Estados da Federação, encarregadas de “controlar” a epidemia...
E não pára por aí. Como milhares de pessoas poderão ser atingidas em poucas semanas e muitas morrerão ou ,melhor dizendo, vão entrar em óbito ( quanto mais mortes, melhor...) e como a (péssima) rede pública de hospitais não tem a menor condição de atender as “classes trabalhadoras” vitimadas, faz-se mister , sempre em “regime de urgência urgentíssima”, contratar, também, hospitais e clínicas da rede privada, tirando-os do vermelho ( nada de comunismo, ouviu?) e deixando-os com um super-lucro imediato... Coisas do Capitalismo.
As minhas reflexões me fizeram, portanto, concluir: essa tal de dengue veio em boa hora. Quantos “benefícios” trará! Ora, então, vamos fazer tudo o que for possível para que a epidemia aumente, afinal , vírus é coisa da natureza, a culpa lhe cabe. Nada de sair por aí, pela internet, divulgando mensagens com receitas baratíssimas de repelentes naturais, feitos à base de álcool e cravo e inofensivas para seres humanos. Tal atitude poderá ser vista, até, como “anti-patriótica...” e fora de tempo, ou como diria Caetano Veloso “fora da ordem”....
Deletei imediatamente a cópia da mensagem que havia escrito, cheio de ilusões, em que divulgava a eficaz receita de repelente natural utilizada por pescadores asiáticos e que poderia ser um sucesso no Brasil na luta contra o que eu considerava uma ameaça: a dengue. Escrevi para as milhares de pessoas a quem enviei a mensagem do repelente pedindo-lhes desculpas e que desconsiderassem a mensagem anterior, explicando como fazer o repelente com álcool e cravo da índia
E aí lembrei de uma frase que me foi dita por um grande e sábio amigo, médico, que ouviu de mim frases de brasileiro desesperado.
- Fulano, a corrupção no Brasil está acabando com a nossa Pátria!
E ele me respondeu na hora “Tá jóia”!!!!-
- Fulano, só quem paga imposto de renda no Brasil somos nós da classe média assalariada.
E ele: “isso é jóia”!!!!
-Fulano, a gente nem pode mais criticar nada pois abrem logo um processo que arruina qualquer um financeiramente!
E ele: “isso é jóia”!!!!
Agora digo, parafraseando-o: a dengue é jóia!!!!
NÓS E A REVOLUÇÃO

Lucivânio Jatobá

Sexta-feira 13 é sempre um dia temido por boa parte da população brasileira. Até os materialistas radicais, que não acreditam nas “forças do além”, ficam “cabreiros” com essa data meio cabalística e de mau agouro. Se essa sexta-feira ocorre em agosto, então, nem pensar em sair de casa sem um dente de alho no bolso, um patuá ou uma figa de madeira.
Mas a sexta-feira 13 a que vou me referir a seguir não foi em agosto de 1968 e sim em dezembro. Hoje, no século XXI, aquela data é apenas, para os mais jovens, um dia já distante em que houve um fato político relevante, conforme documentam os livros didáticos de História. E nada mais.
Não! A sexta-feira 13 dezembro não foi um dia comum. Muitos de minha geração lembram dela com detalhes, detalhes de horror, de medo...
Fui assistir as aulas, normalmente, na ETFPE, à tarde daquele dia. Não notei nada estranho na cidade. A vida seguia normalmente. Encontrei várias pessoas que faziam parte do nosso grupo. Nenhum comentário sobre nada.
Naquele dia, eu estava mesmo era preocupado com a disciplina Física, que passei a gostar muito após as aulas que comecei a ter com um professor negro, inteligentíssimo e carismático, de nome Luis de Oliveira. Muito exigente, o professor forçava-nos a estudar com afinco a disciplina que lecionava. E não era fácil passar com tal nível de exigência nas avaliações.
Estava conversando com um colega de turma, que depois se transformaria num dos meus melhores amigos- Fábio Palhano- , quando alguém do movimento estudantil me chamou à parte.
- Jatobá, soube que a barra vai pesar! Tão dizendo que o Governo Militar vai botar pra foder! – exclamou, com um certo ar de medo.
- Como assim- indaguei?
- Falaram que vai haver endurecimento- ressaltou.
Lembrei então do alerta de um amigo que era do Partidão, meses antes. Ele dizia que aquele discurso doido de Márcio Moreira Alves iria contribuir para um endurecimento do regime. Que os militares não iriam engolir as palavras do deputado.
Não deu outra! A profecia do comunista concretizava-se.
Sem entender mesmo o que estava acontecendo, fui até o Centro da Cidade, pendurado como um morcego, no ônibus gratuito da UFPE, para comprar o Jornal do Brasil. Olhei o jornal de “cabo a rabo”. Nada! Não havia nenhum indicador de instabilidade política na Nação. Li o jornal inteiro, exceto as páginas de Futebol e de Classificados, que sempre odiei, sentado num banco na Pracinha do Diário.
Algumas prostitutos assediaram-me na Pracinha. Queria lá saber de mulher àquela hora! Minha cabeça estava imersa na conversa de pé de ouvido que tivera antes no corredor de entrada da ETFPE. “ A barra vai pesar”, eis em que eu pensava.
Tomei o ônibus elétrico e fui para casa. Uma inquietação me incomodava. Tentava me controlar, pensando numa empregada doméstica que eu andava paquerando, havia semanas, perto da Igreja da Harmonia, no bairro de Casa Amarela. Mais tarde, a chamaria para “tirar um sarro” atrás da antena da Rádio Clube, que ficava próxima do Clube América, na Estrada do Arraial. Um “sarro” tudo resolveria, pensei.
Não resolveu nada! Pelo contrário...
O Repórter Esso, pelo rádio, anunciou a novidade nacional, a preocupante novidade, creio que no início da noite daquela sexta-feira 13.
O locutor, após cumprimentar os ouvintes, anunciou em Edição Extraordinária:
- O Governo Federal acaba de editar o Ato Institucional n° 5.!- anunciou com uma voz fechada e estranha.

O Ato Institucional nº 5 estabelecia, entre outras coisas, que:

O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
Ao escutar nervosamente a edição extraordinária do noticiário radiofônico mais ouvido na época, gelei. O colega que horas antes me falara que a “barra iria pesar” estava corretíssimo e muito bem informado.
Conversei sobre isso , umas horas depois, com Tonica. Ele ficou meio calado e ensimesmou-se. Percebi, de imediato, que ele tinha consciência da noite que se avizinhava. Uma noite que durou dez anos, aproximadamente.
No auge do “aperreio, lembrei da minha moreninha da Estrada do Arraial. Peguei minha bicicleta, e me mandei para encontrá-la. O apartamento em que ela trabalhava ficava quase à frente da Igreja da Harmonia. Tomei uma água de côco, encostado à parede, enquanto esperava que ela descesse.
Da igreja saíam os fiéis. Muitos estavam “puros” após comungarem. Outros teriam feito seus pedidos , talvez impossíveis, para todos os santos. De lado do templo, aguardava a moreninha para “pecar “ na penumbra do terreno baldio.
Quando comecei a “tirar o sarro”, antes sempre motivador, percebi que uma parte do meu corpo não obedecia mais ao meu desejo, por mais que a criaturinha, que me tratava tão bem, colaborasse. Cadê a vontade, antes indomável? Por que isso? Que coisa esquisita! O que ela iria pensar de mim? Que vergonha! Insistia em querer... mas nada!
A frase “ A barra vai pesar” não me deixava em paz. Inibia até os meus hormônios. Vetava o meu desejo.
A moreninha, surpresa, disse, sem rodeios nem piedade : tá brocha, é, meu filho???
O AI-5 acabara de cassar a minha ereção, pelo menos naquela noite inesquecível.
__________
* Esta crônica fará parte de um livro de memória, atualmente em fase de conclusão.
CAMINHANDO SOBRE ESCOMBROS
Lucivânio Jatobá


Na longa avenida, apenas flores mortas atiradas ao chão. Um homem varre a rua empoeirada e reclama da vida... Falando só, queixa-se da mulher. Mas quem ouvirá seus murmúrios inaudíveis na manhã de Natal?
Nos apartamentos, que confinam a avenida, o silêncio.
Na noite anterior, ouvia-se o pipocar incômodo das garrafas de champanhe . Nas varandas, a felicidade parecia até estar ao alcance de todos. Havia risos, havia abraços, havia até beijos. Havia amigos secretos... Havia vida após a exumação dos fantasmas.
Era o que aparentava...
Na noite anterior, todos pareciam bêbados de sonhos, embalados pela voz de Roberto Carlos: “ Eu tenho estrelas, eu tenho sonhos, eu tenho tudo quando estou te amando...”
Na madrugada, alguém caminha lentamente pela longa avenida. No horizonte, após a interminável noite, o Sol parece querer despontar, ainda como luz tênue. Nuvens carregadas tomam conta do céu. Insistem em escurecer o existir.
O homem da limpeza urbana continua o seu monólogo solitário...
Há escombros na alma.
Sobre os escombros, alguém resiste..., talvez com a canção dos Beatles na cabeça: “ Help, I need somebody,/ Help, not just anybody, /Help, you know I need someone, help! “
A FOGUEIRA ESTÁ QUEIMANDO”.... E O PLANETA SE AQUECENDO


Lucivânio Jatobá




Aproximam-se as festas juninas. Tempo bom. Tempo de milho assado, canjica, quadrilhas matutas, advinhações, forró pé-de-serra, muita pamonha e saudade, especialmente da infância. Porém, na quase totalidade dos municípios brasileiros, uma prática absolutamente maléfica generalizou-se, nessas festas populares, deixando um rastro de malefícios.
A prática de acender fogueiras nas festas juninas precisa ser combatida pelo mal que causam à natureza e às pessoas. A natureza sofre com o desmatamento e a poluição atmosférica. Os asmáticos e alérgicos, em geral, padecem na véspera e no dia de São João e São Pedro, no Brasil. Os médicos plantonistas dos hospitais desdobram-se no atendimento emergencial de um número de pacientes que cresce, em progressão geométrica, com problemas pulmonares, nessas noites de fumaça.
Para existirem fogueiras, é necessário cortar árvores das caatingas, dos cerrados, das florestas , isso sem falar das espécies vegetais existentes nas ruas e fundo de quintais, que são impiedosamente dizimadas, transformando-se em cinzas, no “day after”. A madeira queimada libera carbono para a troposfera, na forma de gases, sobretudo CO2, que causam efeito climático adverso. As espécies vegetais cortadas deixam de seqüestrar CO2 da atmosfera, numa dialética perversa. Mais desmatamento, menos seqüestro de CO2, mais fumaça, igual ao efeito estufa. Eis a equação terrível.
A concentração cada vez mais crescente de CO2 na baixa atmosfera colabora para agravar o efeito estufa, um dos mais preocupantes problemas com que se defronta a humanidade.
O aquecimento global é um fato inquestionável. A análise criteriosa dos dados térmicos do planeta, correspondentes a um período de mais de 100 anos de observação criteriosa, mostra que, no século XX, o planeta Terra sofreu um aquecimento de 0,6°C. Os mais otimistas climatologistas prevêem um aquecimento médio do Planeta, para o final do século XXI, da ordem de 4°C. Os mais pessimistas falam em quase 6°C. Qualquer uma dessas previsões, concretizando-se , será catastrófica! As repercussões desse aquecimento global serão gravíssimas e se farão sentir em todos os continentes e sobre os mais diversos elementos do Sistema Terra, com repercussões sociais e econômicas inimagináveis !
A palavra de ordem dos climatologistas e ambientalistas, em geral, é não ultrapassar 2ºC de aquecimento global. Mas para que isso se concretize, é necessário estabilizar urgentemente a concentração de CO2. E o Brasil poderá ter um papel importantíssimo nesse processo, desde que possua governos fortes que enfrentem a questão, sobretudo da destruição acelerada das grandes formações vegetais do País, com inteligência, conhecimento científico e determinação política não imediatista.
Os Estados Unidos se negam a assinar o Protocolo de Kyoto, um péssimo exemplo. A China, outro grande responsável pelo aquecimento global, mostra-se indiferente ao aquecimento global... O Brasil pode dar um bom exemplo, pelo menos nas próximas festas juninas, apagando as fogueiras, antes que o planeta vire uma gigantesca lareira.
A JOVEM JORNALISTA QUE PARTIU PARA O INFINITO*

. Lucivânio Jatobá

Há uma lauda em branco na ASCOM. Os leitores do boletim informativo da Assessoria de Comunicação da UFPE, ansiosos, esperam por um artigo, uma noticia, um comentário que não virão mais.
Há um silêncio nas teclas do computador. Os dedos da jovem jornalista estão agora imóveis. Os olhos dos leitores e amigos apenas contemplam os artigos que ela sempre escreveu, com esmero, com precisão técnica e sobretudo com emoção.
Há palavras ainda soltas no ar, nos corredores da Reitoria. Palavras que rompem o silêncio sepulcral, que a tristeza da perda impõe a todos num momento de perda.
Há, contudo, um sorriso alegre, às vezes irônico, e olhares que falam mais que mil palavras. Eles estão impregnados em seus amigos, nos professores por ela entrevistados, sempre sob um clima de muita paciência e perseverança da jovem jornalista.
Há uma saudade, de indescritível tamanho, dos artigos que não mais insistem em surgir no boletim. Já desesperançados, os leitores e os amigos querem, a todo custo, acreditar que tudo foi um pesadelo. Tentam frear o carro. Pensam ser possível voltar o tempo. Bastaria um momento. Talvez um atalho na estrada. Quem sabe um pausa para contemplar a paisagem agrestina das proximidades de Garanhuns. Uma desistência de última hora. Não! Seria , talvez, uma mudança de planos de viagem a saída. E a jovem jornalista estaria entre nós, risonha, esperançosa... e pensando sempre na melhor notícia a ser divulgada sobre a Instituição a que tanto se dedicou.
Há um mistério , o não se saber nada do destino.
Há um mistério, como disse o poeta, “com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.”
Mas há, por fim, e no fim de todos nós, a esperança, dos que ainda acreditam no transcendental, que um reencontro acontecerá. E a saudade se dissipará como uma nuvem que se esvai após cruzar uma montanha e descer para a planície, num lugar cuja geografia não se conhece.

* Esta crônica é uma homenagem à jornalista Adna Mirtes, que fazia parte da ASCOM, e faleceu, vítima de um desastre de automóvel, na terça-feira de Carnaval.
A GRANDE CIDADE E O MAR

Lucivânio Jatobá



Era uma tarde de julho. Uma tarde chuvosa, como eu nunca havia visto. Nuvens carregadas insistiam em impedir o Sol de brilhar...
O caminhão, meio velho, acabara de chegar. As coisas estavam todas encaixadas e logo a mudança se faria completa. A estrada nos esperava. A estrada desembocaria na grande cidade, onde, me disseram os colegas de escola, havia o mar. O mar e seus encantos. O mar, verde mar! O mar . doce sonho infantil...
Rapidamente, os móveis foram sendo, um a um, colocados no velho caminhão. A radiola do bar da frente tocava um samba-canção de Nelson Gonçalves. Em mim a expectativa de conhecer a grande cidade, onde edifícios substituíam serras, colinas e planaltos, tornava o momento da partida algo alegre. Não haveria , naquela distante cidade, a Ororobá, mas prédios imensos, de onde, do topo, viam-se minúsculas criaturas e carros, que encolhiam, como miniaturas...
E aquela música- “ Boneca de trapo/ pedaços da vida/ que vive perdida no mundo a rolar...”-, vim saber, bem depois, era o réquiem do menino do Agreste, que migrara para a cidade grande...
“ Boneca de trapo/ pedaço da vida...” A música insistentemente era repetida, escutada por mim e pelos bêbados retardatários...
Tudo estava pronto para a longa viagem. Nem houve tempo para abraçar meus amigos, meninos como eu, que pegavam passarinho na várzea, que jogavam bolinhas de gude, olho de gato, no terreno arenoso da rústica praça... Não houve tempo para a tão necessária despedida de um afastamento que seria irremediavelmente para sempre...
Mas houve tempo para sentir o vento úmido molhado bater-me na face. Houve tempo para sonhar com os edifícios, o grande “rio” salgado...
A cidade grande, muitas horas depois, despontou imensa à minha frente!
E não vi mar! Uma selva de concreto era divisada de uma colina que precedia a entrada daquele espaço urbano. Havia um engarrafamento de trânsito, um barulho infernal e pessoas apressadas, que não se cumprimentavam. Não consegui enxergar várzeas, passarinhos, terrenos arenosos para jogar bolinhas de gude, pessoas sentadas em cadeiras de balanço, conversando sobre o cotidiano, nem uma bodega onde minha mãe pudesse comprar fiado, usando uma cadernetinha de espiral e capa dura e a honestidade...
Um Sertão sem fim fez-se imenso, de súbito. E o mar? Onde estava o mar, verde mar?
Depois de quase um mês que cheguei àquele lugar sonhado, com minha família, fui conhecer o mar. No caminho, um atropelamento. Alguém tinha sido triturado por um caminhão de lixo. Pessoas riam, até, olhando o morto estirado na avenida. Alguém, num jipe, gritou: “tirem esse desgraçado daí, preciso chegar logo ao trabalho!”
Aquela cena dantesca afundou-me... pois estava acostumado a ouvir os sinos tristemente repicando , na matriz, quando alguém morria.
Mas daqui a alguns minutos estaríamos no “rio” salgado!
E chegamos, finalmente, naquele espaço arenoso que sofria o embate das ondas!
Minha mãe fizera um almoço para comermos na praia...
Não houve recepção à nossa chegada... Apenas escutei, de uma moça de maiô,que estava de lado, a frase: ‘já estão chegando os “farofeiros”.
Olhei o mar. Às minhas costas estavam edifícios. Aquilo tudo me deixara tonto. Quis ver Ororobá, os pássaros na várzea, os meus amigos, a minha escola, a praça da Matriz... Uma saudade dilacerava-me...
Não havia mais Ororobá, pássaros na várzea, meus amigos...
E um Sertão imenso tomou conta de minha mente, para sempre.
Era sepultado ali o menino interiorano que queria ver a cidade grande e o mar.