29.7.12

UMA ALMA ESTRIADA
Lucivânio Jatobá
(Aos amigos Clóvis Campelo e Valmir Sá)
A mangueira frondosa, que fica num quintal à frente de minha casa, balança loucamente agora. Minutos antes, mal o Sol havia apontado no horizonte, por detrás de uma massa de altos edífícios, fui acordado pelo canto angustiado de um casal de bem-te-vis. O homem do cuscuz, que com uma pontualidade fabulosa apita `aquela hora, não seu sinal de vida. Poucos carros se deslocam pela rua principal. A parada de ônibus está vazia, como posso ver daqui dessa varanda. A paisagem parece dissolver-se aos poucos.
Tento escrever umas linhas. O vento, ao penetrar por uma fresta da janela entreaberta, gera uma espécie de uivo. Desconcentra-me. Lembro dos filmes de terror. Vêm-me à mente cenas do livro O Morro dos Ventos Uivantes. Inquieto-me. Falta-me o apetite.Surge uma vontade de tomar uma dose de uísque. À essa hora? Contenho-me. Abro uma página do Word. As palavras fogem-me. Quero dizer algo. Preciso dizer alguma coisa. Os pássaros continuam no seu canto de desespero. Como iniciarei o escrito?
Para quem escreverei ?
O som estridente e o canto monotonamente repetido dos pássaros me levam à infância. Por que não posso mais ouvir o canto do Ferreiro da praça Leão Coroado, em Vitória de Santo Antão? Gostaria de ouvir o tinido ( timmmmmmmmmmmm, timmmmmmmmmmmm, timmmmmmmmmm) do Ferreiro e o cheiro do café de uma torrefação que se localizava por detrás da praça.
Seria tão bom se o telefone tocasse e do outro lado da linha alguém me dissesse algo engraçado. Talvez palavras de ânimo. Quem sabe apenas um “Bom dia”!
Bem-te-vi! Bem-te-vi!!!! Não, não quero esse canto voraz! Preciso das palavras para expor o meu canto que incomoda a minha alma! Isso sim. Necessito urgentemente de uma razão! E as palavras, por que somem assim, abandonando-me....?
Timmmmmmmmmm! Timmmmmmmmmmmm! Timmmmmmmmmmmm!
O canto remoto do Ferreiro , misturado com o cheiro de café torrando, surgia naquelas tardes de 1965. Dava-me uma razão para estudar Matemática e enfrentar, alguns dias adiante, o Exame de Segunda Época da disciplina. Despertava-me da letargia vespertina. Necessitava de uma razão para aprender os polinômios, a Álgebra Elementar! Diante da página em branco de um caderno de espiral , logo escreveria os exercícios do livro de Carlos Galante. Ax²+bx+c=0. Tanta coisa contida em quatro letras,dois + e um zero. E por que não me chegam as letras, as frases, os períodos, a ideia central do texto?
 
Uuuuuuuuuuuuu! Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Uuuuuuuuuuuuuuuuuu! Que barulho infernal faz esse vento! Fecho a janela. E´ a solução simples, imediata...
A mangueira revolta, com seus galhos envergando-se , quase chegando ao limite de resistência ao esforço físico oriundo do deslocamento do ar, ajuda a delinear um panorama sombrio para essa manhã nublada. Mas, e as palavras, as frases e os períodos.... por que não me chegam à mente?
O choro de uma criança num apartamento ao lado e o barulho de um copo que cai e se esfarela no chão mostram que a vida segue. Há vida até nos planos abissais do oceano escuro.
Olho novamente para a página em branco do Word. O que quero mesmo dizer? Insisto em escrever uma frase, um poema ou uma crônica. A escuridão é imensa nesse pélago profundo.
Renuncio à vontade. Uma alma estriada não pode ter paroxismos de vontades. Logo a realidade do dia apagará qualquer vestígio de poesia.