29.11.08

ESSES VELHOS, POBRES VELHOS

ESSES VELHOS, POBRES VELHOS
Lucivânio Jatobá

De súbito, comecei a sentir o que é ser velho nesse País, campeão mundial em corrupção. Curiosamente, essa tomada de consciência aconteceu logo após aquilo que antigamente se designava como “data natalícia”.
O carnê para o pagamento do meu Seguro Saúde, de uma empresa privada, no mês de novembro deste ano ( 2008) , me chegou à mão. Antecipadamente, como sempre faço ( fazia) , dirigi-me ao caixa do banco para pagá-lo. Mas aí a surpresa. No mês passado havia desembolsado, pelo mesmo plano, a quantia de R$ 420,89 . Agora, estava lá escrito para que meus olhos de São Tomé lessem: pagamento até a data de vencimento: R$ 719,70 ( setecentos e dezenove reais e setenta centavos). Pensei: “houve engano! Não é possível! Mais de 70% de aumento num período ainda de baixa inflação...” Isso está errado!”
Paguei, obviamente, para não ficar desamparado. Depois liguei para a atendente responsável da empresa para que ao menos me informasse se houve algum equívoco naquele valor ou o que tinha mesmo acontecido. Friamente , a jovem atendente, de voz padronizada, como se fosse um robô, foi bem objetiva:
- Dê-me o número do seu CPF, senhor!
- Não houve erro nenhum, apenas o senhor ficou mais velho no último dia 21 de novembro e o seu pagamento sofreu um aumento de aproximadamente 70% , conforme as cláusulas contratuais.
Em outras palavras, comecei a pagar caro pelo fato de que estou acompanhando a tendência da população brasileira e envelheci, ou seja, venci a subnutrição, a mortalidade infantil, as doenças epidêmicas, a dengue, a cólera... e por aí vai. Atingi a casa dos 56 anos. Brasileiro teimoso esse...!
Ao sair do banco, após o assalto oficial, dentro dos trâmites legais das cláusulas contratuais... , comecei a recordar fatos.
Primeiro me veio à mente uma declaração, de uma “alta autoridade governamental” , no Brasil, há uns 4 anos, dizendo que “ o problema da Previdência Social era que a população estava envelhecendo muito...!” ( Incrível a coragem dessa gente! Não mede palavras! ).
Outra cena foi a dos velhinhos sendo humilhados num recadastramento absurdo da mesma Previdência Social, que era para ser exatamente a responsável pelo apoio total aos idosos.
Depois recordei uma reunião burocrática insuportável, da qual participei numa certa instituição de ensino. Na ocasião, discutia-se o fracasso do ensino superior no país ( campeão de corrupção, sempre é bom lembrar). Subitamente, um mais menos jovem professor, titulado, saiu com essa:
- O problema do ensino superior aqui é que ainda há muitos professores velhos. Eles precisam se aposentar para que seja oxigenada a instituição...”
Por último comecei a pensar como meus botões: será que o país campeão de corrupção está sob o domínio do Nazismo e eu, alienado como sou, nem sabia...?
Inevitavelmente, as cenas dos trens descarregando milhares de seres humanos , cujo crime era ter sido judeus, me surgiram. Na entrada de Auschiwitz, na plataforma da estação improvisada, um kapo ou um oficial bestial da SS formava duas filhas. Numa, os jovens e os mais saudáveis, que serviriam para o trabalho escravo. Noutra, os velhos que iriam ao encontro da Solução Final, aspirando o gás mortífero, num pseudo banheiro imundo.
A solução final, mais modernizada e dentro da lei, já chegou ao país campeão do mundo em corrupção. Instalou-se com os ares da pós-modernidade. E´ defendida, nas entrelinhas, até por altas autoridades governamentais.
Aos velhos, a fila que dará entrada para os hospitais públicos do pais... Quantos idosos poderão desembolsar 700, 1000, 2000 reais, por um plano de saúde, para o qual antes contribuíram anos a fio, para que possam morrer, pelo menos com dignidade, num hospital particular?
Se o problema do país campeão são os velhos, que durante tanto tempo trabalharam e pagaram impostos, depois consumidos pelo ralo de amplo raio de curvatura da corrupção, que se adote a “Solução Final”, mas sem subterfúgios, sem mentiras, sem falseamentos estatísticos, sem propagandas governamentais caríssimas em TVs, sem demagogias...

12.11.08

UM VELHO PALHAÇO

UM VELHO PALHAÇO
Lucivânio Jatobá

Foi um trabalho imenso conseguir um espaço livre, naquela cidade interiorana, para instalar o circo. Os espaços disponíveis ficavam todos bem longe do centro ou de um bairro maior, onde pelo menos fosse possível, com a arrecadação da bilheteria, pagar o aluguel da área, a licença da Prefeitura e os poucos artistas e funcionários da empresa falida.
Para Zezé, o velho palhaço, voltar àquela cidade tinha um significado especial. Nem pensava mais em fazer as pessoas rirem. Não iriam mais rir mesmo daquelas piadas que os novos tempos se encarregaram de torná-las “sem graça”. Tentaria, no “espetáculo de abertura”, para uma platéia que talvez reunisse 20 ou 30 pessoas, dar o máximo de si. Faria um esforço descomunal para agradar.
Sentado no mesmo banco da praça, onde lá estivera vinte anos antes, Zezé viu imagens. De repente, “avistou” Cecília ,caminhando em sua direção, com o vestido lilás. O mesmo vestido da cena que o dilacerou.
Cecília, que estimulava o onanismo da meninada, era a rumbeira sensação do circo. Os ricos das cidades, onde o circo era montado, mandavam-lhe flores e bilhetes, nem sempre de português impecável, com frases que invariavelmente terminavam com convites indecorosos. Prometiam-lhe uma “noite de muito prazer a dois”... Cecília lia os bilhetes, soltava um sorriso e dizia para Zezé: “esse corpo é teu, somente teu!!!!!! “. Orgulhoso, o palhaço cinqüentão deitava-se com a rumbeira e se entregava a uma sessão interminável de sexo na tenda em que viviam.
Zezé , no dia seguinte, acordava disposto e se punha a imaginar novas piadas com duplo sentido que fariam a platéia quase desmoronar das arquibancadas de madeira. Após a sua apresentação, viria a atração da noite. Com um microfone na mão e tendo por fundo musical o rufar de tambores e trombetas, o dono do Circo Estrela anunciava:
- senhoras e senhores! O Circo Estrela, com muita honra , apresenta agora a mulher mais desejada da galáxia, a inimitável, a gostosa, a rumbeira internacional!
- Fechem os olhos crianças! Abram bem os olhos, homens desta cidade linda!!!!!!!!!!!!!! Com vocês, Cecília Dolores, a rumbeira sedutora!!!!!!!!!
O grupo musical, então , tocava Siboney, enquanto Cecília rebolava e mostrava as suas potencialidades de mulher. Por trás da cortina, Zezé olhava, orgulhoso e dizia a si mesmo: “esse corpo é meu, somente meu!”.
“Esse corpo e´meu , somente meu”. Essa frase perseguia, agora, o velho palhaço entre as alucinações visuais que estava enfrentando , vinte anos depois...
- Esse corpo é meu, somente meu!!!
- O que você disse, velho safado?- perguntou, raivosa, uma moça que trabalhava na limpeza das ruas e que acabara de passar ao lado do ancião.
Zezé pensara ter visto Cecília, mas quem entenderia àquela hora essa visão? A moça da limpeza pareceu-lhe Cecília.
Desculpou-se e baixou a cabeça.
A jovem não dera-lhe o perdão e saiu resmungando: velho safado!!!!
Mas Cecília, também, nunca fora perdoada por ele. Nunca. Vê-la agarrada com o dono da principal farmácia da cidade deixara-lhe atônito naquela noite fatídica. Observar o homem beijando-lhe e enfiando a mão esquerda entre os seus seios desconsertara-o. O céu desabara e com ele a lona do Circo Estrela. A alma de Zezé entrara em coma.
Nunca mais fora o mesmo. Conseguiu, durante muitos anos, é verdade, provocar gargalhadas enormes em platéias as mais diversas. Mas quando baixava a cortina, e sem mais aquele corpo que tanto prazer lhe dera, era um homem triste. A insônia corroia-lhe a face. A angústia dilacerava o seu espírito. Tinha vontade de encerrar aquele sofrimento. Mas como? Atirando-se de um edifício? Jogando-se de uma ponte sobre um caudaloso rio? Procurando uma árvore de galhos grossos, onde pudesse amarrar uma corda usada na fixação da lona do circo?
Quando esses pensamentos autodestrutivos tomavam conta de sua mente e a covardia não permitia uma “solução final”, restava-lhe permitir que lágrimas percorressem livremente a face.
Zezé criou coragem, naquele dia, e se deslocou até a casa onde a rumbeira ficara com seu novo e rico amor. Será que ela estaria lá? Como estava o seu corpo? Será que cortara os cabelos?
A casa existia, mas estava totalmente abandonada e com muros e paredes recobertos por melão de são Caetano, o maior sinal de decadência. Não havia gente na casa, que mais parecia mal-assombrada.
Já era final de tarde. `A noite haveria espetáculo para um público, como sempre ultimamente, reduzidíssimo. Tentou ter forças para enfrentar a platéia. Contaria, sim, piadas... e ouviria os aplausos outrora ensurdecedores. Os aplausos ainda davam-lhe ânimo para suportar o peso das horas.
Ao terminar aquela que seria a sua última piada, não ouviu uma só gargalhada. O silêncio era total e só foi rompido quando um gaiato gritou: “ tira esse Zé Mané daí! Vai dormir, vovô!!!!! “ O auditório veio abaixo com uma sonora gargalhada. Em vez de aplausos, Zezé escutou uma vaia.
Baixou a cabeça , humilhado, e olhou para o chão do picadeiro. Ao levantá-la e ao mirar a platéia, com um sentimento mesclado de ódio e vergonha, viu sentadas várias “Cecílias”, todas de vestido lilás. Elas riam e pareciam dizer num coro uníssono : “saia daí, velho! Desapareça!!!!!”
Uma sensação de vazio invadiu-lhe a mente . A cabeça ficou tonta. O coração disparou. A vontade de viver esvaiu-se. Não era mais nada. Precisaria de coragem, muita coragem. De que adiantaria continuar?
Olhou para o circo, que o abrigara tantos anos. Mirou o estojo de maquiagem, mas não teve coragem de arrancar a máscara. Despedia-se assim de tudo, como em imagem de câmera lenta.
No outro dia, o domador do único leão existente no Circo Estrela , ainda madrugada, viu um vulto que pendia de um galho da árvore mais próxima. No chão um antigo retrato da rumbeira e uma palavra escrita à mão no verso e com letras trêmulas: Adeus!