29.11.08

ESSES VELHOS, POBRES VELHOS

ESSES VELHOS, POBRES VELHOS
Lucivânio Jatobá

De súbito, comecei a sentir o que é ser velho nesse País, campeão mundial em corrupção. Curiosamente, essa tomada de consciência aconteceu logo após aquilo que antigamente se designava como “data natalícia”.
O carnê para o pagamento do meu Seguro Saúde, de uma empresa privada, no mês de novembro deste ano ( 2008) , me chegou à mão. Antecipadamente, como sempre faço ( fazia) , dirigi-me ao caixa do banco para pagá-lo. Mas aí a surpresa. No mês passado havia desembolsado, pelo mesmo plano, a quantia de R$ 420,89 . Agora, estava lá escrito para que meus olhos de São Tomé lessem: pagamento até a data de vencimento: R$ 719,70 ( setecentos e dezenove reais e setenta centavos). Pensei: “houve engano! Não é possível! Mais de 70% de aumento num período ainda de baixa inflação...” Isso está errado!”
Paguei, obviamente, para não ficar desamparado. Depois liguei para a atendente responsável da empresa para que ao menos me informasse se houve algum equívoco naquele valor ou o que tinha mesmo acontecido. Friamente , a jovem atendente, de voz padronizada, como se fosse um robô, foi bem objetiva:
- Dê-me o número do seu CPF, senhor!
- Não houve erro nenhum, apenas o senhor ficou mais velho no último dia 21 de novembro e o seu pagamento sofreu um aumento de aproximadamente 70% , conforme as cláusulas contratuais.
Em outras palavras, comecei a pagar caro pelo fato de que estou acompanhando a tendência da população brasileira e envelheci, ou seja, venci a subnutrição, a mortalidade infantil, as doenças epidêmicas, a dengue, a cólera... e por aí vai. Atingi a casa dos 56 anos. Brasileiro teimoso esse...!
Ao sair do banco, após o assalto oficial, dentro dos trâmites legais das cláusulas contratuais... , comecei a recordar fatos.
Primeiro me veio à mente uma declaração, de uma “alta autoridade governamental” , no Brasil, há uns 4 anos, dizendo que “ o problema da Previdência Social era que a população estava envelhecendo muito...!” ( Incrível a coragem dessa gente! Não mede palavras! ).
Outra cena foi a dos velhinhos sendo humilhados num recadastramento absurdo da mesma Previdência Social, que era para ser exatamente a responsável pelo apoio total aos idosos.
Depois recordei uma reunião burocrática insuportável, da qual participei numa certa instituição de ensino. Na ocasião, discutia-se o fracasso do ensino superior no país ( campeão de corrupção, sempre é bom lembrar). Subitamente, um mais menos jovem professor, titulado, saiu com essa:
- O problema do ensino superior aqui é que ainda há muitos professores velhos. Eles precisam se aposentar para que seja oxigenada a instituição...”
Por último comecei a pensar como meus botões: será que o país campeão de corrupção está sob o domínio do Nazismo e eu, alienado como sou, nem sabia...?
Inevitavelmente, as cenas dos trens descarregando milhares de seres humanos , cujo crime era ter sido judeus, me surgiram. Na entrada de Auschiwitz, na plataforma da estação improvisada, um kapo ou um oficial bestial da SS formava duas filhas. Numa, os jovens e os mais saudáveis, que serviriam para o trabalho escravo. Noutra, os velhos que iriam ao encontro da Solução Final, aspirando o gás mortífero, num pseudo banheiro imundo.
A solução final, mais modernizada e dentro da lei, já chegou ao país campeão do mundo em corrupção. Instalou-se com os ares da pós-modernidade. E´ defendida, nas entrelinhas, até por altas autoridades governamentais.
Aos velhos, a fila que dará entrada para os hospitais públicos do pais... Quantos idosos poderão desembolsar 700, 1000, 2000 reais, por um plano de saúde, para o qual antes contribuíram anos a fio, para que possam morrer, pelo menos com dignidade, num hospital particular?
Se o problema do país campeão são os velhos, que durante tanto tempo trabalharam e pagaram impostos, depois consumidos pelo ralo de amplo raio de curvatura da corrupção, que se adote a “Solução Final”, mas sem subterfúgios, sem mentiras, sem falseamentos estatísticos, sem propagandas governamentais caríssimas em TVs, sem demagogias...

12.11.08

UM VELHO PALHAÇO

UM VELHO PALHAÇO
Lucivânio Jatobá

Foi um trabalho imenso conseguir um espaço livre, naquela cidade interiorana, para instalar o circo. Os espaços disponíveis ficavam todos bem longe do centro ou de um bairro maior, onde pelo menos fosse possível, com a arrecadação da bilheteria, pagar o aluguel da área, a licença da Prefeitura e os poucos artistas e funcionários da empresa falida.
Para Zezé, o velho palhaço, voltar àquela cidade tinha um significado especial. Nem pensava mais em fazer as pessoas rirem. Não iriam mais rir mesmo daquelas piadas que os novos tempos se encarregaram de torná-las “sem graça”. Tentaria, no “espetáculo de abertura”, para uma platéia que talvez reunisse 20 ou 30 pessoas, dar o máximo de si. Faria um esforço descomunal para agradar.
Sentado no mesmo banco da praça, onde lá estivera vinte anos antes, Zezé viu imagens. De repente, “avistou” Cecília ,caminhando em sua direção, com o vestido lilás. O mesmo vestido da cena que o dilacerou.
Cecília, que estimulava o onanismo da meninada, era a rumbeira sensação do circo. Os ricos das cidades, onde o circo era montado, mandavam-lhe flores e bilhetes, nem sempre de português impecável, com frases que invariavelmente terminavam com convites indecorosos. Prometiam-lhe uma “noite de muito prazer a dois”... Cecília lia os bilhetes, soltava um sorriso e dizia para Zezé: “esse corpo é teu, somente teu!!!!!! “. Orgulhoso, o palhaço cinqüentão deitava-se com a rumbeira e se entregava a uma sessão interminável de sexo na tenda em que viviam.
Zezé , no dia seguinte, acordava disposto e se punha a imaginar novas piadas com duplo sentido que fariam a platéia quase desmoronar das arquibancadas de madeira. Após a sua apresentação, viria a atração da noite. Com um microfone na mão e tendo por fundo musical o rufar de tambores e trombetas, o dono do Circo Estrela anunciava:
- senhoras e senhores! O Circo Estrela, com muita honra , apresenta agora a mulher mais desejada da galáxia, a inimitável, a gostosa, a rumbeira internacional!
- Fechem os olhos crianças! Abram bem os olhos, homens desta cidade linda!!!!!!!!!!!!!! Com vocês, Cecília Dolores, a rumbeira sedutora!!!!!!!!!
O grupo musical, então , tocava Siboney, enquanto Cecília rebolava e mostrava as suas potencialidades de mulher. Por trás da cortina, Zezé olhava, orgulhoso e dizia a si mesmo: “esse corpo é meu, somente meu!”.
“Esse corpo e´meu , somente meu”. Essa frase perseguia, agora, o velho palhaço entre as alucinações visuais que estava enfrentando , vinte anos depois...
- Esse corpo é meu, somente meu!!!
- O que você disse, velho safado?- perguntou, raivosa, uma moça que trabalhava na limpeza das ruas e que acabara de passar ao lado do ancião.
Zezé pensara ter visto Cecília, mas quem entenderia àquela hora essa visão? A moça da limpeza pareceu-lhe Cecília.
Desculpou-se e baixou a cabeça.
A jovem não dera-lhe o perdão e saiu resmungando: velho safado!!!!
Mas Cecília, também, nunca fora perdoada por ele. Nunca. Vê-la agarrada com o dono da principal farmácia da cidade deixara-lhe atônito naquela noite fatídica. Observar o homem beijando-lhe e enfiando a mão esquerda entre os seus seios desconsertara-o. O céu desabara e com ele a lona do Circo Estrela. A alma de Zezé entrara em coma.
Nunca mais fora o mesmo. Conseguiu, durante muitos anos, é verdade, provocar gargalhadas enormes em platéias as mais diversas. Mas quando baixava a cortina, e sem mais aquele corpo que tanto prazer lhe dera, era um homem triste. A insônia corroia-lhe a face. A angústia dilacerava o seu espírito. Tinha vontade de encerrar aquele sofrimento. Mas como? Atirando-se de um edifício? Jogando-se de uma ponte sobre um caudaloso rio? Procurando uma árvore de galhos grossos, onde pudesse amarrar uma corda usada na fixação da lona do circo?
Quando esses pensamentos autodestrutivos tomavam conta de sua mente e a covardia não permitia uma “solução final”, restava-lhe permitir que lágrimas percorressem livremente a face.
Zezé criou coragem, naquele dia, e se deslocou até a casa onde a rumbeira ficara com seu novo e rico amor. Será que ela estaria lá? Como estava o seu corpo? Será que cortara os cabelos?
A casa existia, mas estava totalmente abandonada e com muros e paredes recobertos por melão de são Caetano, o maior sinal de decadência. Não havia gente na casa, que mais parecia mal-assombrada.
Já era final de tarde. `A noite haveria espetáculo para um público, como sempre ultimamente, reduzidíssimo. Tentou ter forças para enfrentar a platéia. Contaria, sim, piadas... e ouviria os aplausos outrora ensurdecedores. Os aplausos ainda davam-lhe ânimo para suportar o peso das horas.
Ao terminar aquela que seria a sua última piada, não ouviu uma só gargalhada. O silêncio era total e só foi rompido quando um gaiato gritou: “ tira esse Zé Mané daí! Vai dormir, vovô!!!!! “ O auditório veio abaixo com uma sonora gargalhada. Em vez de aplausos, Zezé escutou uma vaia.
Baixou a cabeça , humilhado, e olhou para o chão do picadeiro. Ao levantá-la e ao mirar a platéia, com um sentimento mesclado de ódio e vergonha, viu sentadas várias “Cecílias”, todas de vestido lilás. Elas riam e pareciam dizer num coro uníssono : “saia daí, velho! Desapareça!!!!!”
Uma sensação de vazio invadiu-lhe a mente . A cabeça ficou tonta. O coração disparou. A vontade de viver esvaiu-se. Não era mais nada. Precisaria de coragem, muita coragem. De que adiantaria continuar?
Olhou para o circo, que o abrigara tantos anos. Mirou o estojo de maquiagem, mas não teve coragem de arrancar a máscara. Despedia-se assim de tudo, como em imagem de câmera lenta.
No outro dia, o domador do único leão existente no Circo Estrela , ainda madrugada, viu um vulto que pendia de um galho da árvore mais próxima. No chão um antigo retrato da rumbeira e uma palavra escrita à mão no verso e com letras trêmulas: Adeus!

24.7.08

O LADRÃO COMUM E OS RIGORES DA LEI

Lucivânio Jatobá

Ao ler o artigo, não pude conter a indignação. Está lá no glorioso Jornal do Commércio: “ FLANELINHA PRESO POR ROUBAR QUEIJO VOLTA PARA CASA”.
Sem dúvida, um “ladrão” como tantos outros. Mas um ladrão miserável, sem conta corrente em instituições financeiras. O meliante nunca foi Prefeito, não possui banco, nem tem conhecidos importantes em altos escalões governamentais e muito menos no Poder Judiciário. E´ um “Zé Ninguém” que só existe no dia das Eleições, quando candidatos batem-lhe “delicadamente” nas costas.
Wandevergue Paiva é “flanelinha”. Vive de “bicos”, como se diz aqui no Nordeste brasileiro. Tem “apenas” 06 (seis ) filhos e uma esposa para sustentar. E essas criaturas necessitam, pelo menos, de alimentos, como precisam todos os animais, inclusive os cães rabugentos abandonados nas ruas e avenidas. Mas como alimentar sete pessoas , vivendo de “bicos”, de centavos dados por proprietários (revoltados) de automóveis? O que fazer quando se chega em casa e a meninada está chorando, com face amarelada, de fome?
Wandevergue Paiva foi algemado e levado ao COTEL ( o Centro de Triagem , para onde são encaminhados os bandidos detidos). Ninguém deu entrevistas na Globo protestando pelo fato de que o miserável faminto foi algemado. Nenhuma alta autoridade brasileira reclamou. O meliante é um miserável.... como tantos outros que vivem nas favelas brasileiras.
Wandevergue Paiva, o flanelinha, passou 6 dias jogado no COTEL. Nenhuma alta autoridade do Judiciário brasileiro concedeu-lhe um habeas corpus de madrugada, no mesmo dia de sua prisão. Wandevergue Paiva é um “ladrão de galinhas”, diria meu pai. Um ladrão comum. Um ladrão que roubou não pelo vício ou por sabedoria excessiva. Wandevergue roubou pelo desespero que o ronco das vísceras estomacais e intestinais causa quando a fome aperta. Roubou como “recurso derradeiro”. Roubou pelo desespero da fome, que nunca fica Zero, exceto na propaganda.
Wandevergue Paiva é um cidadão qualquer. Para ele aplicam-se os rigores da Lei e fornecem uma cela imunda.
__________________
* Em face das repercussões nacionais desse caso, após o escândalo ocorrido com ladrões de alto escalões,já em liberdade, o flanelinha, depois de 6 dias presos, foi solto, graças ao Defensor Público Marcos Caribe e à Juíza Socorro Brito Alves. Outras informações: www.jc.com.br , edição de 24/7/2008

21.6.08

PAULO MACIEL

A notícia , agora, da morte do prof. Paulo Maciel, pegou-me de surpresa. A comunidade científica pernambucana também encontra-se de luto como eu.
Há exatamente um ano, nesse mesmo mês e dia, falecia outro grande homem culto, o prof. Manuel Correia de Andrade. Naquela manhã, do velório, no exato local onde o ex-Reitor Paulo será velado - Academia Pernambucana de Letras- o encontrei. Conversámos rapidamente. O momento de tristeza impedia uma conversa mais prolongada.
Tinha por Paulo Maciel uma grande admiração. Ele me respeitava muito e até me honrava quando, de público, fazia referências a coisas tão simples e superficiais que ousadamente escrevi em jornais de Pernambuco.
Guardo do prof. Paulo Maciel uma excelente imagem de homem público, de intelectual, de orador e sobretudo de hábil Reitor da UFPE. Foi, talvez, o mais culto dos Reitores que passaram por aquela instituição de ensino superior.
Recordo agora de sua habilidade como Reitor. Habilidade singular, posta à prova, em momentos tão complexos da vida nacional e da UFPE, em particular.
Era final dos anos 70. O país estava ainda sob um regime de exceção. As liberdades democráticas impedidas, por razões óbvias. Mas os estudantes, começaram a ensaiar uma movimentação, de certa maneira "forte", no câmpus da UFPE. O regime não tolerava tal desobediência às determinações de silêncio. A movimentação crescia e o governo pensava em endurecer para evitar que o exemplo se alastrasse. Havia impasse, medos e possibilidade de radicalização dos dois lados....
Os estudantes estavam em massa na frente do CFCH. O ambiente era tenso. O clima era pesado, mesmo. Havia em todo canto os temidos "agentes de segurança" de então...Uns facilmente identificáveis; outros não! De súbito, desce de um carro da Reitoria, um senhor baixinho, de ar um pouco austero ( um pouco, apenas). Dirige-se ao meio da massa estudantil irrequieta, preparada para vaias coletivas. Agigantou-se de repente. Transcendeu, portanto, os limites de sua estatura física. Ergueu-se como um Hércules. Pondo de lado o protocolo, aquele homem, sem empáfia ou arrogância, sobe num dos bancos da frente do prédio e discursa para os jovens inquietos. Fez-se um silêncio. Ouviam-se suas palavras atentamente. Pregava o equilíbrio, pedia para que o movimento cessasse e assumia o compromisso de que não haveria punições nem invasão da UFPE por forças repressivas. Chegou até a concordar publicamente com algumas reivindicações estudantis.. . Publicamente!
Naquela época, poucos reitores teriam tal coragem. Poucos possuiriam tal determinação. Muito poucos ousariam concordar com reivindicações estudantis. Mas Paulo Maciel ousou e no meio da massa! E conseguiu, com uma facilidade que me impressionou, colocar ordem e tranqulidade no câmpus da UFPE.
Ouvir uma explanação de Paulo Maciel era um exercício de aprendizagem do que havia de melhor na oratória pernambucana.
Ouvir Paulo Maciel era aprender sobre tudo.
Lembrar Paulo Maciel é lembrar que os contrários, politicamente falando, podem conviver.
Lembrar Paulo Maciel é lembrar a liberdade maior, a de idéias. E Universidade é isso: a convivência de opostos.
Mais um intelectual pernambucano parte para uma viagem cujo destino ninguém conhece mesmo. Na estação, um adeus, uma saudade, um lenço branco acenando.
Ide em Paz, prof. Paulo!

13.6.08

AS MATINÊS DO CINEMA BRAGA

AS MATINÊS DO CINEMA BRAGA
Lucivânio Jatobá

Para muitos, que irão ler esta crônica, o Cinema Braga nada representa. Que cinema mesmo é esse? Em que lugar do mundo ele foi construído? Que importância possui?
O Cinema Braga situava-se no centro da cidade de Vitória de Santo Antão, numa estreita rua de pomposo nome: Av. Rui Barbosa. Era um prédio pequeno, meio quente, sem maiores atrativos estéticos. Em sua parede frontal eram expostos os cartazes de filmes que seriam vistos.
O Cinema Braga era a fábrica de fantasias...de minhas tardes de domingo.
Ainda não existia a televisão. As pessoas ficavam nas janelas de suas casas. Outras sentavam-se nas calçadas, em cadeiras de palhinha indiana. As conversas sobre a vida alheia permeavam , quase sempre, aquelas rodas de gente na frente das casas.
Nós meninos vitorienses aguardávamos, com ansiedade, a chegada da tarde do domingo. A fila imensa logo se formava na “av” Rui Barbosa. Enquanto esperávamos a abertura do cinema, podíamos ouvir os acordes magistrais do piano de Vandinho, jovem pianista de tradicional família da Cidade e que morava bem à frente, quase, do Braga.
O comércio estabelecia-se logo de início na rua. O comércio dos meninos, cuja moeda eram, normalmente, cédulas improvisadas de papel que envolvia os cigarros Astória, Minister e Hollywood.
Trocava-se ou “vendia-se” tudo: bolinhas de gude, piões, figurinhas dos campeões da Copa do Mundo, jibis, chocolate peixe...Ninguém enganava ninguém. A honestidade de um menino para outro menino era impressionantemente linda.
Quando seu Inácio instalou a máquina de pipoca, na entrada do Braga, que transformou em algo obsoleto as pipocas ( bem mais gostosas, é verdade) de seu Manoel e inútil o “algodão doce” de um outro vendedor, ficávamos parados à frente da máquina com suas pipocas que pulavam sem parar.
De repente, lá de um local por trás da tela , surgiam três ritmados e estranhos sonhos. Iria começar o sonho. Os meninos se apressavam para ocupar o melhor lugar na sala de exibição.
Havia , quase sempre, um “filme de índio”. Era filme sobre os “perversos” apaches. Ficávamos atentos à trama. Os soldados do Forte tal, sempre de uniforme azul, partiam para a batalha, ao som de uma corneta, que anunciaria o início do genocídio. Nós nem nos dávamos conta da mensagem subliminar de apoio ao extermínio de seres humanos que se deu nos EUA, na Marcha para Oeste.
Quando um apache era morto, o grito de satisfação era geral na platéia.. De súbito, outro apache caia do cavalo , sangrando. Uma bala varara-lhe o peito. E depois outro e outro. A platéia delirava de satisfação! Apaches sendo dizimados, sob os aplausos e gritos da meninada....
O Cinema Braga foi o meu “Cinema Paradiso”
Ali , naquele mágico ambiente, sonhei. Esqueci a realidade..
As tardes de domingo, agora, são ainda mais monótonas. Na TV, um homem meio forte de voz irritante, faz com que milhões de meninos e meninas e senhoras e senhores fiquem mudos diante de uma telinha. Os cinemas transformaram-se em templos de seitas que surgem do nada e pregam a salvação eterna.
Lá fora, na tela da vida, os corpos aparecem ensangüentados. Indiferentes a isso, crianças , nas grandes cidades, passam por cadáveres assassinados diariamente, vítimas de queima de arquivo, de briga de traficantes ou de execução sumária por grupos de extermínios.
Enquanto isso, escuto os sons mágicos que emanam dos dedos de Vandinho, coloco-me na fila para comprar o ingresso e depois peço um pacote de pipoca. Acabei de ouvir os três toques lá dentro da sala.
O filme de hoje será....
Meu Deus, que filme vai ser exibido? De que estou falando mesmo? Onde está, agora, Roy Rogers? Cadê o Cinema Braga? Por que não vejo aberta a bilheteria? Onde está a fila enorme que se formava? E os apaches? E o Homem-Morcego? E as figurinhas de Didi, Pelé e Vavá? Preciso trocar as minhas figurinhas!!!!!! Por favor, me digam: aonde foram todos?
Daqui a pouco voltaremos, após os comerciais! Plim,plim!!!!

2.6.08

AMBIENTALISTAS, UNI-VOS!

AMBIENTALISTAS, UNI-VOS!

Lucivânio Jatobá

Um espectro ronda o Brasil. O espectro do Ambientalismo. Todos os poderosos uniram-se numa Santa Aliança para exorcizá-lo: governos, altos escalões do poder, madeireiros, grandes industriais que poluem rios e lagunas, mineradores e até ex-radicais de esquerda da geração 68.
Qual o ambientalista hoje que não é chamado de reacionário, de anti-progresso, de anti-desenvolvimentista? Qual é mesmo o partido político no Poder ou fora do Poder que , na prática, se digna a defender, com rigor, a natureza ameaçada? Qual é mesmo o Ministro ou a Ministra que consegue evitar o avanço impressionante da destruição do Bioma Amazônico?
Daí decorrem dois fatos: I- O ambientalismo já pode ser considerado uma força até pelos que detêm o poder no País; II- Já chegou o tempo dos ambientalistas, os que defendem a sobrevivência do planeta enfermo, saírem dos seus gabinetes, com ar condicionado, e publicarem abertamente, diante de todo mundo, suas idéias, seus fins , suas tendências, opondo às críticas ferrenhas dos poderosos um manifesto ao povo brasileiro.
A Terra é uma só. A História da superfície terrestre até hoje tem sido a história da luta de contrários. Fatos físicos, de naturezas diversas, vivem uma incessante luta. A Floresta Amazônica , por exemplo, composta de árvores latifoliadas, lança na atmosfera uma grande quantidade de água, mediante o processo de evapotranspiração.. Sobre essa massa florestal há CO2. Esse CO2 contribui para o aquecimento global. Mas a mesma floresta seqüestra esse dióxido de Carbono, equilibrando o sistema aberto. Mas os que defendem o “desenvolvimento” a todo custo ou, em outras palavras, aqueles que , como Stalin, advogam que “os fins justificam os meios”, não estão preocupados com desequilíbrios ambientais graves. Isso é problema “inventado” pelo “ambientalismo”.O fim é o “desenvolvimento”; é a geração de emprego...
Qual a posição do Ambientalismo em relação à destruição da Floresta Amazônica que , segundo a ex- Ministra Marina Silva, “vem crescendo e o combate ao desmatamento sofrendo um retrocesso na Amazônia?”
Os ambientalistas sérios não têm interesses diferentes das classes trabalhadoras. Não formulam quaisquer teorias particulares mentirosas para que essas classes sejam prejudicadas e muito menos a Pátria brasileira. Os ambientalistas sérios não formam um partido à parte. Defendem a conservação do Bioma Amazônico. Pensam nas alterações climato-ambientais gravíssimas que virão com esse desmatamento que se prenuncia demolidor. Preocupam-se com o semi-árido nordestino, cujo regime de chuvas depende, em grande parte, fundamentalmente da quantidade de água que a floresta cede à atmosfera e que é trazida, no verão, para os espaços secos do trópico semi-árido brasileiro, particularmente no oeste baiano e pernambucano.
O fim imediato do ambientalismo é a Terra. As conclusões teóricas dos ambientalistas sérios não se baseiam, de forma alguma, em princípios inventados por mentes mirabolantes, por algum reacionário anti-desenvolvimentista, por cientista da “elite anti-povo”.
Mas deixemos de lado as objeções dos que detêm o Poder e das “classes dominantes” que querem espaços e mais espaços para plantar, devastando as florestas. Os ambientalistas sérios não se rebaixam em dissimular suas idéias e seus objetivos. Que os madeireiros e os seus representantes no Governo e no Legislativo tremam diante da “Revolução de Idéias Ambientalista”! Nada temos mais a perder, a não ser um planeta que se mostra doente e covardemente agredido.
Ambientalistas de todo o Brasil, uni-vos!

8.5.08

NÓS E A REVOLUÇÃO (20)

O ano de 1969 não começara bem. Desde o início do mês de janeiro, sentia algo estranho no ar. Uma coisa esquisita. Se eu dissesse isso a meus amigos “marxistas”, certamente me indagariam: estás virando “metafísico”, Jatobá?
Naquele dia 18 de março, acordei com uma sensação estranha. Precisava estudar uma disciplina relacionada à Hidráulica, cujo conteúdo era pesadíssimo para meu raciocínio. Mas a vontade era não ir para a ETFPE. Ir não ir? Eis o meu conflito... Eliminei-o depois de um certo tempo.
Resolvi pegar o ônibus, logo de manhã, para ir `a Escola, onde estudaria na Biblioteca imensa lá existente. Tentaria entender aquela coisa de vasos comunicantes e da potência de uma bomba hidráulica.
No ônibus em que viajei, naquela manhã, um popular ligou um imenso rádio de pilha. A música que estava tocando era uma italiana, que começava a fazer sucesso: “Zíngara”. Ao ouví-la, senti um estranho arrepio. Desci perto do Derby e me encaminhei para a ETFPE. A música não saía da minha mente. Incomodava-me, não sei o motivo. Queria livrar-me daquela melodia e não conseguia.
Ao passar quase em frente à Casa do Estudante de Pernambuco, encontrei um colega, meio triste. Tentei tirar uma brincadeira boba com ele, mas vi que algo o impedia de sorrir. Encerrou a minha tentativa e foi logo dizendo-me:
- Jatobá, “tás” sabendo da novidade?
- Não? Que novidade?- perguntei-lhe com preocupação.
- Rapaz, Marcos Valença morreu!- Disse-me com um ar de desolação.
- Como é? Que brincadeira é essa...? Indaguei incrédulo.
- O enterro é hoje à tarde, lá no Cemitério de Santa Amaro. O velório é lá- orientou-me.
Arrasei-me. Fiquei desconsertado. Não sabia o que dizer, o que pensar, para onde ir, o que fazer...? O colega despediu-se de mim e continuou indo em direção à Praça do Derby.
Entrei na ETFPE e confirmei a trágica notícia com outras pessoas. E a música terrível continuava a perturbar-me a mente. Os versos iniciais se repetiam, com uma freqüência irritante:
“ Prendi questa mano, Zíngara
Dimi pure Che destino avró
Parla Del mio amore
Io no há paura...”
Fui para o campo de futebol, onde, quase um ano antes, ouvi de Marcos o seu proselitismo socialista. Ali conversamos algumas vezes sobre os destinos da humanidade. Ali, enquanto muitos jovens corriam, loucamente, atrás de uma bola, nós falávamos de conflitos sociais, poder, governo, socialismo, lutas estudantis. Ali aprendi com ele a gostar de literatura. Ali conheci Jorge Amado.
Agora um silêncio. Ninguém jogava bola. Nas árvores, algumas sabiás entoavam um canto triste, um réquiem, talvez .
Sentei-me, baixei a cabeça. Foi impossível conter as lágrimas. Um choro solitário significava, naquele momento, o desaguar de uma tristeza profunda. Perdia um amigo, alguém que havia me despertado para o mundo...
De novo, os versos da canção fatídica:
“Prendi questa mano, Zíngara
Dimi pure Che destino avró
Parla del mio amore
Io no há paura...”
Não troquei uma palavra com ninguém. Dirigi-me à Biblioteca, inutilmente... Quem conseguiria, naquele estado, entender a mecânica dos flúidos?
A última vez que tinha me defrontado com uma perda assim foi quando meu pai falecera, três anos antes. Sensação terrível essa de ficar órfão. As cenas são sempre as mesmas, universalmente: o velório, a hora de fechar o caixão, as inúteis palavras de consolo dos amigos e até de desconhecidos que cumprem, meramente, um “dever “ social de “dar os pêsames”, o desespero da perda. Alguém ali despede-se da vida. Nunca mais será visto. Subitamente vira passado e só! E será, muito em breve, esquecido.
Nunca havia ido ao Cemitério de Santo Amaro. Nem mesmo sabia onde era. Procurei orientação de como chegar lá e fui dar adeus ao amigo.
Muitos jovens do Movimento estudantil estavam no pátio onde o velório se processava. Alguns que, inclusive, estavam sendo procurados. Além desses jovens, também se encontravam umas figuras desconhecidas, com óculos pesados e escuros, de paletó e gravatá. Não eram, obviamente, do movimento. Estavam ali observando as pessoas, enquanto a dor da perda nos consumia. Foram até aquele local a serviço...
Não sabia mesmo o que havia causado aquela tragédia. O que teria tirado de cena aquele jovem tão inteligente, aparentemente saudável e, acima de tudo, idealista?
Uma crise de apêndice, coisa tão corriqueira na prática médica há tanto tempo, transformara-se numa septicemia e, portanto, em infecção generalizada. Seus últimos momentos foram de sofrimento indescritível. Sua lucidez fora afetada por imposição das bactérias que insistiam em destruir um cérebro tão privilegiado como aquele. Bactérias insignificantes, minúsculas e até invisível à vista desarmada consumiam alguém que poderia ter dado uma grande contribuição ao país. Os delírios insuportáveis transformaram-no um ser alienado, enquanto a infecção avançava impiedosamente.
Todos nós estávamos ali incrédulos. Talvez tudo aquilo fosse apenas um pesadelo ou um delírio coletivo. Marcos, ali deitado, imóvel, com um ar de desespero e pálido, de súbito levantaria, tiraria uma de suas brincadeiras, ficaríamos surpresos e depois daríamos uma gargalhada... Era tudo um sonho com final feliz.
Se fosse um sonho seria dantesco...
Ramirez, meio reservado , mostrava-se passado com aquela fatalidade, mas sempre com algumas pessoas por perto. Mais tarde soube, que estavam querendo prendê-lo no cemitério. Teria sido terrível se isso acontecesse numa cerimônia do adeus tão doída. Respeitaram o peso do momento...
Enfiaram o caixão naquele espaço estreito da catacumba, que havia sido construída fazia pouco tempo. Pacientemente, dois coveiros, já acostumados demais com a dor alheia da perda, colocavam pacientemente tijolo por tijolo, com uma argamassa de cimento, sem que sobrasse espaço nenhum. Assisti quieto `a cerimônia. O silêncio era total. De repente, tudo fechado, nenhum espaço vazio, por menor que fosse. A escuridão...
O coveiro pegou um pedaço de madeira e colocou o seguinte: M.V- 18/3/1969.
Marcos Valença repousava ali, reduzido às iniciais M.V e a uma data. Logo, em poucos anos, outro ser humano ocuparia aquele mesmo espaço. E depois outro e outro...
Caminhei pelo cemitério. Um jambeiro do Pará floria. Pardais faziam um barulho imenso numa mangueira. Três crianças corriam e brincavam e gritavam, por entre catacumbas. Um casal de namorados passeava de mãos dadas.
A vida seguia inexorável... indiferente à minha dor.

- Essa crônica fará parte de um livro que está no prelo .

4.5.08

VIOLÃO MUDO
( Carta enviada a Cláudio Almeida, um excelente violonista e compositor pesqueirense)

Meu Querido amigo e conterrâneo Cláudio Almeida,

A notícia da morte de Eurivinha me foi dada vários dias depois, pelo meu irmão, Luciano. Pouparam-me dessa coisa desagradável que é saber que os nossos estão indo, ninguém sabe mesmo aonde... Na hora que me deram a notícia, minha reação foi aquela frase idiota que sempre dizemos: não é possível!!!!
Eurivinha era meu primo legítimo. Seu pai era um conhecidíssimo e humilde relojoeiro, carinhosamente chamado de "seu Netinho!" Netinho era meu tio. A mãe de Eurivinha era conhecida, em Pesqueira, por adorar fazer serenata- isso numa época em que a mulher era absolutamente "do lar”- pelo vozeirão que possuía e pelo amor à vida e sobretudo à música! Sou, portanto, dessa espécie em extinção, ou seja, de uma família que em vez de viver se autodestruindo por migalhas ou luta pelo poder, se deliciava com encontros musicais que eram feitos, com carinho ,na casa de seu Netinho....
Meu primeiro contato com violão foi através de Eurivinha. Meu pai, Emídio, gostava de patrocinar, entre aspas, a vinda de Eurivinha à Vitória de Santo Antão. Passava dias lá em casa e, geralmente, no final de semana, a festa rolava. Eu, com meus poucos anos de idade, menos de uma dezena, para ser mais preciso, ficava impressionado com aquela agilidade com que Eurivinha, sempre risonho e com uma respiração ofegante, mexia com os dedos nos trastes do violão. Quando havia uma pausa para o almoço, eu corria e tentava , na minha ingenuidade infantil, imitá-lo ao violão... Frustração total! Era impossível. O resultado era que eu mexia na afinação, e quando voltavam para a farra, as cordas estavam desafinadas. Eurivinha me olhava, sorria, e dizia: "Emídio, Vaninho ainda vai tocar violão."
Não deu outra. Aquele violão de Eurivinha me enfeitiçou. E jamais esqueci "Sons de Carrilhões".
Eurivinha foi um grande Violonista, da escola fiel de Dilermando Reis. Encantou as noites pesqueirenses. Mas merecia ter tido um certo destaque. Não o teve. Como não têm os grandes homens que são humildes. E Eurivinha era acima de tudo humilde demais. Morreu pobre, solitário e certamente com profunda melancolia. A solidão da velhice é uma coisa terrível. Antes o suicídio... E´uma morte mais digna! Fruto de uma decisão estabelecida com revolta...
Há uns anos ele esteve aqui no Recife. Ficou comigo uns dias. Falou-me que estava com o colesterol alto. Resolvi ajudá-lo. Fui até o Hospital das Clínicas e consegui, com amigos, um monte de exames para ele. Estavam alteradas as taxas... Mas ele viajou e eu fiquei de enviar uns CDs para ele, mas ele me disse que não mandasse. Eurivinha só tinha "radiola"! Como aquilo me doeu... Pensei em dar um aparelho de CD para ele. O meu tempo corrido, de cidadão e professor de cidade imensa, me impediu essa iniciativa, tão simples. E perdi contato com ele.
Às vezes, quando fazia excursão com meus alunos da UFPE, inventava um "motivo" para entrar em Pesqueira. Aí eu passava na frente da casa dele, na frente da casa de Rinaldo Jatoba, no hospital, que o meu primo e irmão dele, médico ( Genivaldo), morto prematuramente, dirigiu com tanto esmero... na busca de um tempo para sempre perdido. Não pude desfrutar do violão de Eurivinha em noitadas pesqueirenses. Outros, sim, tiveram essa sorte...
Só sei que um violão emudeceu! Os dedos de um violonista ,que para mim foi um dos grandes, estão rígidos, imóveis.... Que acordes sairão agora daquelas mãos frias, calmas e mortas? Em que espaço estarão os "Sons de Carrilhões", as valsas, os choros ... que sairam daquelas mãos ágeis e do violão humilde?
Talvez haja uma nova estrela brilhando no céu límpido de uma noite pesqueirense. Talvez algum velho boêmio , solitário, amante da boa míusica, resolva cantar um samba-canção, do desespero dos abandonados, num banco da Praça de Santa Águeda.... Talvez, o violão mudo transforme-se em instrumento vivo, e nele os dedos ágeis de Eurivinha, na imaginação dos sensíveis, voltem a compor acordes de Sol maior, Do menor, sem dissonância nenhuma e desperte a cidade, lembrando que é hora de trabalhar, e que a vida segue inexorável... Quem sabe se esses acordes tradicionais e os sons dos bordões não irão também acordar os pássaros ainda existentes nas Matas da serra do Ororobá? Se assim for, teremos na praça um grande coro, com sons celestiais, pássaros e cantos de bêbados retardatários...
Um abraço do amigo e admirador
Lucivânio Jatobá
A DENGUE É JÓIA
Lucivânio Jatobá


A manchete de 1° de maio do Jornal do Commércio me chamou a atenção e me levou a reflexões: “ MAIS MÉDICOS E LEITOS CONTRA A DENGUE”. Embaixo, o “lead” da matéria dizia que “53 médicos, auxiliares de enfermagem e sanitaristas seriam contratados e assumiriam no dia seguinte”.
Cá com meus botões, da minha camisa desbotada, pensei: que “coisa fantástica” essa epidemia anunciada de dengue! Veio a tempo e trazendo empregos para médicos, enfermeiros e sanitaristas! E o desemprego, no Brasil, não está nada controlado.... E´ um monstro que cresce toda manhã...
Continuei com minhas reflexões caboclas, de cidadão idiota.
Mais dengue, mais emprego, mas também muito mais coisas: mais propagandas caríssimas nas TVs e emissoras de rádio ( sim, as emissoras que quiserem divulgar gratuitamente vinhetas que possam reduzir a epidemia não servem...), mais estudos ( inúteis) acadêmicos, mais repelentes, superfaturados, comprados, em regime de emergência ( afinal a “saúde popular” não pode esperar), mais campanhas publicitárias, utilizando os antigos ( mas atualmente caros) panfletos, mais reuniões de assessores, que serão pagos com gordos “pro-labore” etc e tal .
Sim, e a indústria farmacêutica lucrará muito, coisa da lei da oferta e da procura : mais paracetamol será comprado, mais cloro será vendido, mais vitamina C , mais muitas outras substâncias químicas serão adquiridas pelas secretarias de governo, nos vários Estados da Federação, encarregadas de “controlar” a epidemia...
E não pára por aí. Como milhares de pessoas poderão ser atingidas em poucas semanas e muitas morrerão ou ,melhor dizendo, vão entrar em óbito ( quanto mais mortes, melhor...) e como a (péssima) rede pública de hospitais não tem a menor condição de atender as “classes trabalhadoras” vitimadas, faz-se mister , sempre em “regime de urgência urgentíssima”, contratar, também, hospitais e clínicas da rede privada, tirando-os do vermelho ( nada de comunismo, ouviu?) e deixando-os com um super-lucro imediato... Coisas do Capitalismo.
As minhas reflexões me fizeram, portanto, concluir: essa tal de dengue veio em boa hora. Quantos “benefícios” trará! Ora, então, vamos fazer tudo o que for possível para que a epidemia aumente, afinal , vírus é coisa da natureza, a culpa lhe cabe. Nada de sair por aí, pela internet, divulgando mensagens com receitas baratíssimas de repelentes naturais, feitos à base de álcool e cravo e inofensivas para seres humanos. Tal atitude poderá ser vista, até, como “anti-patriótica...” e fora de tempo, ou como diria Caetano Veloso “fora da ordem”....
Deletei imediatamente a cópia da mensagem que havia escrito, cheio de ilusões, em que divulgava a eficaz receita de repelente natural utilizada por pescadores asiáticos e que poderia ser um sucesso no Brasil na luta contra o que eu considerava uma ameaça: a dengue. Escrevi para as milhares de pessoas a quem enviei a mensagem do repelente pedindo-lhes desculpas e que desconsiderassem a mensagem anterior, explicando como fazer o repelente com álcool e cravo da índia
E aí lembrei de uma frase que me foi dita por um grande e sábio amigo, médico, que ouviu de mim frases de brasileiro desesperado.
- Fulano, a corrupção no Brasil está acabando com a nossa Pátria!
E ele me respondeu na hora “Tá jóia”!!!!-
- Fulano, só quem paga imposto de renda no Brasil somos nós da classe média assalariada.
E ele: “isso é jóia”!!!!
-Fulano, a gente nem pode mais criticar nada pois abrem logo um processo que arruina qualquer um financeiramente!
E ele: “isso é jóia”!!!!
Agora digo, parafraseando-o: a dengue é jóia!!!!
NÓS E A REVOLUÇÃO

Lucivânio Jatobá

Sexta-feira 13 é sempre um dia temido por boa parte da população brasileira. Até os materialistas radicais, que não acreditam nas “forças do além”, ficam “cabreiros” com essa data meio cabalística e de mau agouro. Se essa sexta-feira ocorre em agosto, então, nem pensar em sair de casa sem um dente de alho no bolso, um patuá ou uma figa de madeira.
Mas a sexta-feira 13 a que vou me referir a seguir não foi em agosto de 1968 e sim em dezembro. Hoje, no século XXI, aquela data é apenas, para os mais jovens, um dia já distante em que houve um fato político relevante, conforme documentam os livros didáticos de História. E nada mais.
Não! A sexta-feira 13 dezembro não foi um dia comum. Muitos de minha geração lembram dela com detalhes, detalhes de horror, de medo...
Fui assistir as aulas, normalmente, na ETFPE, à tarde daquele dia. Não notei nada estranho na cidade. A vida seguia normalmente. Encontrei várias pessoas que faziam parte do nosso grupo. Nenhum comentário sobre nada.
Naquele dia, eu estava mesmo era preocupado com a disciplina Física, que passei a gostar muito após as aulas que comecei a ter com um professor negro, inteligentíssimo e carismático, de nome Luis de Oliveira. Muito exigente, o professor forçava-nos a estudar com afinco a disciplina que lecionava. E não era fácil passar com tal nível de exigência nas avaliações.
Estava conversando com um colega de turma, que depois se transformaria num dos meus melhores amigos- Fábio Palhano- , quando alguém do movimento estudantil me chamou à parte.
- Jatobá, soube que a barra vai pesar! Tão dizendo que o Governo Militar vai botar pra foder! – exclamou, com um certo ar de medo.
- Como assim- indaguei?
- Falaram que vai haver endurecimento- ressaltou.
Lembrei então do alerta de um amigo que era do Partidão, meses antes. Ele dizia que aquele discurso doido de Márcio Moreira Alves iria contribuir para um endurecimento do regime. Que os militares não iriam engolir as palavras do deputado.
Não deu outra! A profecia do comunista concretizava-se.
Sem entender mesmo o que estava acontecendo, fui até o Centro da Cidade, pendurado como um morcego, no ônibus gratuito da UFPE, para comprar o Jornal do Brasil. Olhei o jornal de “cabo a rabo”. Nada! Não havia nenhum indicador de instabilidade política na Nação. Li o jornal inteiro, exceto as páginas de Futebol e de Classificados, que sempre odiei, sentado num banco na Pracinha do Diário.
Algumas prostitutos assediaram-me na Pracinha. Queria lá saber de mulher àquela hora! Minha cabeça estava imersa na conversa de pé de ouvido que tivera antes no corredor de entrada da ETFPE. “ A barra vai pesar”, eis em que eu pensava.
Tomei o ônibus elétrico e fui para casa. Uma inquietação me incomodava. Tentava me controlar, pensando numa empregada doméstica que eu andava paquerando, havia semanas, perto da Igreja da Harmonia, no bairro de Casa Amarela. Mais tarde, a chamaria para “tirar um sarro” atrás da antena da Rádio Clube, que ficava próxima do Clube América, na Estrada do Arraial. Um “sarro” tudo resolveria, pensei.
Não resolveu nada! Pelo contrário...
O Repórter Esso, pelo rádio, anunciou a novidade nacional, a preocupante novidade, creio que no início da noite daquela sexta-feira 13.
O locutor, após cumprimentar os ouvintes, anunciou em Edição Extraordinária:
- O Governo Federal acaba de editar o Ato Institucional n° 5.!- anunciou com uma voz fechada e estranha.

O Ato Institucional nº 5 estabelecia, entre outras coisas, que:

O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
Ao escutar nervosamente a edição extraordinária do noticiário radiofônico mais ouvido na época, gelei. O colega que horas antes me falara que a “barra iria pesar” estava corretíssimo e muito bem informado.
Conversei sobre isso , umas horas depois, com Tonica. Ele ficou meio calado e ensimesmou-se. Percebi, de imediato, que ele tinha consciência da noite que se avizinhava. Uma noite que durou dez anos, aproximadamente.
No auge do “aperreio, lembrei da minha moreninha da Estrada do Arraial. Peguei minha bicicleta, e me mandei para encontrá-la. O apartamento em que ela trabalhava ficava quase à frente da Igreja da Harmonia. Tomei uma água de côco, encostado à parede, enquanto esperava que ela descesse.
Da igreja saíam os fiéis. Muitos estavam “puros” após comungarem. Outros teriam feito seus pedidos , talvez impossíveis, para todos os santos. De lado do templo, aguardava a moreninha para “pecar “ na penumbra do terreno baldio.
Quando comecei a “tirar o sarro”, antes sempre motivador, percebi que uma parte do meu corpo não obedecia mais ao meu desejo, por mais que a criaturinha, que me tratava tão bem, colaborasse. Cadê a vontade, antes indomável? Por que isso? Que coisa esquisita! O que ela iria pensar de mim? Que vergonha! Insistia em querer... mas nada!
A frase “ A barra vai pesar” não me deixava em paz. Inibia até os meus hormônios. Vetava o meu desejo.
A moreninha, surpresa, disse, sem rodeios nem piedade : tá brocha, é, meu filho???
O AI-5 acabara de cassar a minha ereção, pelo menos naquela noite inesquecível.
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* Esta crônica fará parte de um livro de memória, atualmente em fase de conclusão.
CAMINHANDO SOBRE ESCOMBROS
Lucivânio Jatobá


Na longa avenida, apenas flores mortas atiradas ao chão. Um homem varre a rua empoeirada e reclama da vida... Falando só, queixa-se da mulher. Mas quem ouvirá seus murmúrios inaudíveis na manhã de Natal?
Nos apartamentos, que confinam a avenida, o silêncio.
Na noite anterior, ouvia-se o pipocar incômodo das garrafas de champanhe . Nas varandas, a felicidade parecia até estar ao alcance de todos. Havia risos, havia abraços, havia até beijos. Havia amigos secretos... Havia vida após a exumação dos fantasmas.
Era o que aparentava...
Na noite anterior, todos pareciam bêbados de sonhos, embalados pela voz de Roberto Carlos: “ Eu tenho estrelas, eu tenho sonhos, eu tenho tudo quando estou te amando...”
Na madrugada, alguém caminha lentamente pela longa avenida. No horizonte, após a interminável noite, o Sol parece querer despontar, ainda como luz tênue. Nuvens carregadas tomam conta do céu. Insistem em escurecer o existir.
O homem da limpeza urbana continua o seu monólogo solitário...
Há escombros na alma.
Sobre os escombros, alguém resiste..., talvez com a canção dos Beatles na cabeça: “ Help, I need somebody,/ Help, not just anybody, /Help, you know I need someone, help! “
A FOGUEIRA ESTÁ QUEIMANDO”.... E O PLANETA SE AQUECENDO


Lucivânio Jatobá




Aproximam-se as festas juninas. Tempo bom. Tempo de milho assado, canjica, quadrilhas matutas, advinhações, forró pé-de-serra, muita pamonha e saudade, especialmente da infância. Porém, na quase totalidade dos municípios brasileiros, uma prática absolutamente maléfica generalizou-se, nessas festas populares, deixando um rastro de malefícios.
A prática de acender fogueiras nas festas juninas precisa ser combatida pelo mal que causam à natureza e às pessoas. A natureza sofre com o desmatamento e a poluição atmosférica. Os asmáticos e alérgicos, em geral, padecem na véspera e no dia de São João e São Pedro, no Brasil. Os médicos plantonistas dos hospitais desdobram-se no atendimento emergencial de um número de pacientes que cresce, em progressão geométrica, com problemas pulmonares, nessas noites de fumaça.
Para existirem fogueiras, é necessário cortar árvores das caatingas, dos cerrados, das florestas , isso sem falar das espécies vegetais existentes nas ruas e fundo de quintais, que são impiedosamente dizimadas, transformando-se em cinzas, no “day after”. A madeira queimada libera carbono para a troposfera, na forma de gases, sobretudo CO2, que causam efeito climático adverso. As espécies vegetais cortadas deixam de seqüestrar CO2 da atmosfera, numa dialética perversa. Mais desmatamento, menos seqüestro de CO2, mais fumaça, igual ao efeito estufa. Eis a equação terrível.
A concentração cada vez mais crescente de CO2 na baixa atmosfera colabora para agravar o efeito estufa, um dos mais preocupantes problemas com que se defronta a humanidade.
O aquecimento global é um fato inquestionável. A análise criteriosa dos dados térmicos do planeta, correspondentes a um período de mais de 100 anos de observação criteriosa, mostra que, no século XX, o planeta Terra sofreu um aquecimento de 0,6°C. Os mais otimistas climatologistas prevêem um aquecimento médio do Planeta, para o final do século XXI, da ordem de 4°C. Os mais pessimistas falam em quase 6°C. Qualquer uma dessas previsões, concretizando-se , será catastrófica! As repercussões desse aquecimento global serão gravíssimas e se farão sentir em todos os continentes e sobre os mais diversos elementos do Sistema Terra, com repercussões sociais e econômicas inimagináveis !
A palavra de ordem dos climatologistas e ambientalistas, em geral, é não ultrapassar 2ºC de aquecimento global. Mas para que isso se concretize, é necessário estabilizar urgentemente a concentração de CO2. E o Brasil poderá ter um papel importantíssimo nesse processo, desde que possua governos fortes que enfrentem a questão, sobretudo da destruição acelerada das grandes formações vegetais do País, com inteligência, conhecimento científico e determinação política não imediatista.
Os Estados Unidos se negam a assinar o Protocolo de Kyoto, um péssimo exemplo. A China, outro grande responsável pelo aquecimento global, mostra-se indiferente ao aquecimento global... O Brasil pode dar um bom exemplo, pelo menos nas próximas festas juninas, apagando as fogueiras, antes que o planeta vire uma gigantesca lareira.
A JOVEM JORNALISTA QUE PARTIU PARA O INFINITO*

. Lucivânio Jatobá

Há uma lauda em branco na ASCOM. Os leitores do boletim informativo da Assessoria de Comunicação da UFPE, ansiosos, esperam por um artigo, uma noticia, um comentário que não virão mais.
Há um silêncio nas teclas do computador. Os dedos da jovem jornalista estão agora imóveis. Os olhos dos leitores e amigos apenas contemplam os artigos que ela sempre escreveu, com esmero, com precisão técnica e sobretudo com emoção.
Há palavras ainda soltas no ar, nos corredores da Reitoria. Palavras que rompem o silêncio sepulcral, que a tristeza da perda impõe a todos num momento de perda.
Há, contudo, um sorriso alegre, às vezes irônico, e olhares que falam mais que mil palavras. Eles estão impregnados em seus amigos, nos professores por ela entrevistados, sempre sob um clima de muita paciência e perseverança da jovem jornalista.
Há uma saudade, de indescritível tamanho, dos artigos que não mais insistem em surgir no boletim. Já desesperançados, os leitores e os amigos querem, a todo custo, acreditar que tudo foi um pesadelo. Tentam frear o carro. Pensam ser possível voltar o tempo. Bastaria um momento. Talvez um atalho na estrada. Quem sabe um pausa para contemplar a paisagem agrestina das proximidades de Garanhuns. Uma desistência de última hora. Não! Seria , talvez, uma mudança de planos de viagem a saída. E a jovem jornalista estaria entre nós, risonha, esperançosa... e pensando sempre na melhor notícia a ser divulgada sobre a Instituição a que tanto se dedicou.
Há um mistério , o não se saber nada do destino.
Há um mistério, como disse o poeta, “com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.”
Mas há, por fim, e no fim de todos nós, a esperança, dos que ainda acreditam no transcendental, que um reencontro acontecerá. E a saudade se dissipará como uma nuvem que se esvai após cruzar uma montanha e descer para a planície, num lugar cuja geografia não se conhece.

* Esta crônica é uma homenagem à jornalista Adna Mirtes, que fazia parte da ASCOM, e faleceu, vítima de um desastre de automóvel, na terça-feira de Carnaval.
A GRANDE CIDADE E O MAR

Lucivânio Jatobá



Era uma tarde de julho. Uma tarde chuvosa, como eu nunca havia visto. Nuvens carregadas insistiam em impedir o Sol de brilhar...
O caminhão, meio velho, acabara de chegar. As coisas estavam todas encaixadas e logo a mudança se faria completa. A estrada nos esperava. A estrada desembocaria na grande cidade, onde, me disseram os colegas de escola, havia o mar. O mar e seus encantos. O mar, verde mar! O mar . doce sonho infantil...
Rapidamente, os móveis foram sendo, um a um, colocados no velho caminhão. A radiola do bar da frente tocava um samba-canção de Nelson Gonçalves. Em mim a expectativa de conhecer a grande cidade, onde edifícios substituíam serras, colinas e planaltos, tornava o momento da partida algo alegre. Não haveria , naquela distante cidade, a Ororobá, mas prédios imensos, de onde, do topo, viam-se minúsculas criaturas e carros, que encolhiam, como miniaturas...
E aquela música- “ Boneca de trapo/ pedaços da vida/ que vive perdida no mundo a rolar...”-, vim saber, bem depois, era o réquiem do menino do Agreste, que migrara para a cidade grande...
“ Boneca de trapo/ pedaço da vida...” A música insistentemente era repetida, escutada por mim e pelos bêbados retardatários...
Tudo estava pronto para a longa viagem. Nem houve tempo para abraçar meus amigos, meninos como eu, que pegavam passarinho na várzea, que jogavam bolinhas de gude, olho de gato, no terreno arenoso da rústica praça... Não houve tempo para a tão necessária despedida de um afastamento que seria irremediavelmente para sempre...
Mas houve tempo para sentir o vento úmido molhado bater-me na face. Houve tempo para sonhar com os edifícios, o grande “rio” salgado...
A cidade grande, muitas horas depois, despontou imensa à minha frente!
E não vi mar! Uma selva de concreto era divisada de uma colina que precedia a entrada daquele espaço urbano. Havia um engarrafamento de trânsito, um barulho infernal e pessoas apressadas, que não se cumprimentavam. Não consegui enxergar várzeas, passarinhos, terrenos arenosos para jogar bolinhas de gude, pessoas sentadas em cadeiras de balanço, conversando sobre o cotidiano, nem uma bodega onde minha mãe pudesse comprar fiado, usando uma cadernetinha de espiral e capa dura e a honestidade...
Um Sertão sem fim fez-se imenso, de súbito. E o mar? Onde estava o mar, verde mar?
Depois de quase um mês que cheguei àquele lugar sonhado, com minha família, fui conhecer o mar. No caminho, um atropelamento. Alguém tinha sido triturado por um caminhão de lixo. Pessoas riam, até, olhando o morto estirado na avenida. Alguém, num jipe, gritou: “tirem esse desgraçado daí, preciso chegar logo ao trabalho!”
Aquela cena dantesca afundou-me... pois estava acostumado a ouvir os sinos tristemente repicando , na matriz, quando alguém morria.
Mas daqui a alguns minutos estaríamos no “rio” salgado!
E chegamos, finalmente, naquele espaço arenoso que sofria o embate das ondas!
Minha mãe fizera um almoço para comermos na praia...
Não houve recepção à nossa chegada... Apenas escutei, de uma moça de maiô,que estava de lado, a frase: ‘já estão chegando os “farofeiros”.
Olhei o mar. Às minhas costas estavam edifícios. Aquilo tudo me deixara tonto. Quis ver Ororobá, os pássaros na várzea, os meus amigos, a minha escola, a praça da Matriz... Uma saudade dilacerava-me...
Não havia mais Ororobá, pássaros na várzea, meus amigos...
E um Sertão imenso tomou conta de minha mente, para sempre.
Era sepultado ali o menino interiorano que queria ver a cidade grande e o mar.