8.5.08

NÓS E A REVOLUÇÃO (20)

O ano de 1969 não começara bem. Desde o início do mês de janeiro, sentia algo estranho no ar. Uma coisa esquisita. Se eu dissesse isso a meus amigos “marxistas”, certamente me indagariam: estás virando “metafísico”, Jatobá?
Naquele dia 18 de março, acordei com uma sensação estranha. Precisava estudar uma disciplina relacionada à Hidráulica, cujo conteúdo era pesadíssimo para meu raciocínio. Mas a vontade era não ir para a ETFPE. Ir não ir? Eis o meu conflito... Eliminei-o depois de um certo tempo.
Resolvi pegar o ônibus, logo de manhã, para ir `a Escola, onde estudaria na Biblioteca imensa lá existente. Tentaria entender aquela coisa de vasos comunicantes e da potência de uma bomba hidráulica.
No ônibus em que viajei, naquela manhã, um popular ligou um imenso rádio de pilha. A música que estava tocando era uma italiana, que começava a fazer sucesso: “Zíngara”. Ao ouví-la, senti um estranho arrepio. Desci perto do Derby e me encaminhei para a ETFPE. A música não saía da minha mente. Incomodava-me, não sei o motivo. Queria livrar-me daquela melodia e não conseguia.
Ao passar quase em frente à Casa do Estudante de Pernambuco, encontrei um colega, meio triste. Tentei tirar uma brincadeira boba com ele, mas vi que algo o impedia de sorrir. Encerrou a minha tentativa e foi logo dizendo-me:
- Jatobá, “tás” sabendo da novidade?
- Não? Que novidade?- perguntei-lhe com preocupação.
- Rapaz, Marcos Valença morreu!- Disse-me com um ar de desolação.
- Como é? Que brincadeira é essa...? Indaguei incrédulo.
- O enterro é hoje à tarde, lá no Cemitério de Santa Amaro. O velório é lá- orientou-me.
Arrasei-me. Fiquei desconsertado. Não sabia o que dizer, o que pensar, para onde ir, o que fazer...? O colega despediu-se de mim e continuou indo em direção à Praça do Derby.
Entrei na ETFPE e confirmei a trágica notícia com outras pessoas. E a música terrível continuava a perturbar-me a mente. Os versos iniciais se repetiam, com uma freqüência irritante:
“ Prendi questa mano, Zíngara
Dimi pure Che destino avró
Parla Del mio amore
Io no há paura...”
Fui para o campo de futebol, onde, quase um ano antes, ouvi de Marcos o seu proselitismo socialista. Ali conversamos algumas vezes sobre os destinos da humanidade. Ali, enquanto muitos jovens corriam, loucamente, atrás de uma bola, nós falávamos de conflitos sociais, poder, governo, socialismo, lutas estudantis. Ali aprendi com ele a gostar de literatura. Ali conheci Jorge Amado.
Agora um silêncio. Ninguém jogava bola. Nas árvores, algumas sabiás entoavam um canto triste, um réquiem, talvez .
Sentei-me, baixei a cabeça. Foi impossível conter as lágrimas. Um choro solitário significava, naquele momento, o desaguar de uma tristeza profunda. Perdia um amigo, alguém que havia me despertado para o mundo...
De novo, os versos da canção fatídica:
“Prendi questa mano, Zíngara
Dimi pure Che destino avró
Parla del mio amore
Io no há paura...”
Não troquei uma palavra com ninguém. Dirigi-me à Biblioteca, inutilmente... Quem conseguiria, naquele estado, entender a mecânica dos flúidos?
A última vez que tinha me defrontado com uma perda assim foi quando meu pai falecera, três anos antes. Sensação terrível essa de ficar órfão. As cenas são sempre as mesmas, universalmente: o velório, a hora de fechar o caixão, as inúteis palavras de consolo dos amigos e até de desconhecidos que cumprem, meramente, um “dever “ social de “dar os pêsames”, o desespero da perda. Alguém ali despede-se da vida. Nunca mais será visto. Subitamente vira passado e só! E será, muito em breve, esquecido.
Nunca havia ido ao Cemitério de Santo Amaro. Nem mesmo sabia onde era. Procurei orientação de como chegar lá e fui dar adeus ao amigo.
Muitos jovens do Movimento estudantil estavam no pátio onde o velório se processava. Alguns que, inclusive, estavam sendo procurados. Além desses jovens, também se encontravam umas figuras desconhecidas, com óculos pesados e escuros, de paletó e gravatá. Não eram, obviamente, do movimento. Estavam ali observando as pessoas, enquanto a dor da perda nos consumia. Foram até aquele local a serviço...
Não sabia mesmo o que havia causado aquela tragédia. O que teria tirado de cena aquele jovem tão inteligente, aparentemente saudável e, acima de tudo, idealista?
Uma crise de apêndice, coisa tão corriqueira na prática médica há tanto tempo, transformara-se numa septicemia e, portanto, em infecção generalizada. Seus últimos momentos foram de sofrimento indescritível. Sua lucidez fora afetada por imposição das bactérias que insistiam em destruir um cérebro tão privilegiado como aquele. Bactérias insignificantes, minúsculas e até invisível à vista desarmada consumiam alguém que poderia ter dado uma grande contribuição ao país. Os delírios insuportáveis transformaram-no um ser alienado, enquanto a infecção avançava impiedosamente.
Todos nós estávamos ali incrédulos. Talvez tudo aquilo fosse apenas um pesadelo ou um delírio coletivo. Marcos, ali deitado, imóvel, com um ar de desespero e pálido, de súbito levantaria, tiraria uma de suas brincadeiras, ficaríamos surpresos e depois daríamos uma gargalhada... Era tudo um sonho com final feliz.
Se fosse um sonho seria dantesco...
Ramirez, meio reservado , mostrava-se passado com aquela fatalidade, mas sempre com algumas pessoas por perto. Mais tarde soube, que estavam querendo prendê-lo no cemitério. Teria sido terrível se isso acontecesse numa cerimônia do adeus tão doída. Respeitaram o peso do momento...
Enfiaram o caixão naquele espaço estreito da catacumba, que havia sido construída fazia pouco tempo. Pacientemente, dois coveiros, já acostumados demais com a dor alheia da perda, colocavam pacientemente tijolo por tijolo, com uma argamassa de cimento, sem que sobrasse espaço nenhum. Assisti quieto `a cerimônia. O silêncio era total. De repente, tudo fechado, nenhum espaço vazio, por menor que fosse. A escuridão...
O coveiro pegou um pedaço de madeira e colocou o seguinte: M.V- 18/3/1969.
Marcos Valença repousava ali, reduzido às iniciais M.V e a uma data. Logo, em poucos anos, outro ser humano ocuparia aquele mesmo espaço. E depois outro e outro...
Caminhei pelo cemitério. Um jambeiro do Pará floria. Pardais faziam um barulho imenso numa mangueira. Três crianças corriam e brincavam e gritavam, por entre catacumbas. Um casal de namorados passeava de mãos dadas.
A vida seguia inexorável... indiferente à minha dor.

- Essa crônica fará parte de um livro que está no prelo .

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