4.5.08

NÓS E A REVOLUÇÃO

Lucivânio Jatobá

Sexta-feira 13 é sempre um dia temido por boa parte da população brasileira. Até os materialistas radicais, que não acreditam nas “forças do além”, ficam “cabreiros” com essa data meio cabalística e de mau agouro. Se essa sexta-feira ocorre em agosto, então, nem pensar em sair de casa sem um dente de alho no bolso, um patuá ou uma figa de madeira.
Mas a sexta-feira 13 a que vou me referir a seguir não foi em agosto de 1968 e sim em dezembro. Hoje, no século XXI, aquela data é apenas, para os mais jovens, um dia já distante em que houve um fato político relevante, conforme documentam os livros didáticos de História. E nada mais.
Não! A sexta-feira 13 dezembro não foi um dia comum. Muitos de minha geração lembram dela com detalhes, detalhes de horror, de medo...
Fui assistir as aulas, normalmente, na ETFPE, à tarde daquele dia. Não notei nada estranho na cidade. A vida seguia normalmente. Encontrei várias pessoas que faziam parte do nosso grupo. Nenhum comentário sobre nada.
Naquele dia, eu estava mesmo era preocupado com a disciplina Física, que passei a gostar muito após as aulas que comecei a ter com um professor negro, inteligentíssimo e carismático, de nome Luis de Oliveira. Muito exigente, o professor forçava-nos a estudar com afinco a disciplina que lecionava. E não era fácil passar com tal nível de exigência nas avaliações.
Estava conversando com um colega de turma, que depois se transformaria num dos meus melhores amigos- Fábio Palhano- , quando alguém do movimento estudantil me chamou à parte.
- Jatobá, soube que a barra vai pesar! Tão dizendo que o Governo Militar vai botar pra foder! – exclamou, com um certo ar de medo.
- Como assim- indaguei?
- Falaram que vai haver endurecimento- ressaltou.
Lembrei então do alerta de um amigo que era do Partidão, meses antes. Ele dizia que aquele discurso doido de Márcio Moreira Alves iria contribuir para um endurecimento do regime. Que os militares não iriam engolir as palavras do deputado.
Não deu outra! A profecia do comunista concretizava-se.
Sem entender mesmo o que estava acontecendo, fui até o Centro da Cidade, pendurado como um morcego, no ônibus gratuito da UFPE, para comprar o Jornal do Brasil. Olhei o jornal de “cabo a rabo”. Nada! Não havia nenhum indicador de instabilidade política na Nação. Li o jornal inteiro, exceto as páginas de Futebol e de Classificados, que sempre odiei, sentado num banco na Pracinha do Diário.
Algumas prostitutos assediaram-me na Pracinha. Queria lá saber de mulher àquela hora! Minha cabeça estava imersa na conversa de pé de ouvido que tivera antes no corredor de entrada da ETFPE. “ A barra vai pesar”, eis em que eu pensava.
Tomei o ônibus elétrico e fui para casa. Uma inquietação me incomodava. Tentava me controlar, pensando numa empregada doméstica que eu andava paquerando, havia semanas, perto da Igreja da Harmonia, no bairro de Casa Amarela. Mais tarde, a chamaria para “tirar um sarro” atrás da antena da Rádio Clube, que ficava próxima do Clube América, na Estrada do Arraial. Um “sarro” tudo resolveria, pensei.
Não resolveu nada! Pelo contrário...
O Repórter Esso, pelo rádio, anunciou a novidade nacional, a preocupante novidade, creio que no início da noite daquela sexta-feira 13.
O locutor, após cumprimentar os ouvintes, anunciou em Edição Extraordinária:
- O Governo Federal acaba de editar o Ato Institucional n° 5.!- anunciou com uma voz fechada e estranha.

O Ato Institucional nº 5 estabelecia, entre outras coisas, que:

O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
Ao escutar nervosamente a edição extraordinária do noticiário radiofônico mais ouvido na época, gelei. O colega que horas antes me falara que a “barra iria pesar” estava corretíssimo e muito bem informado.
Conversei sobre isso , umas horas depois, com Tonica. Ele ficou meio calado e ensimesmou-se. Percebi, de imediato, que ele tinha consciência da noite que se avizinhava. Uma noite que durou dez anos, aproximadamente.
No auge do “aperreio, lembrei da minha moreninha da Estrada do Arraial. Peguei minha bicicleta, e me mandei para encontrá-la. O apartamento em que ela trabalhava ficava quase à frente da Igreja da Harmonia. Tomei uma água de côco, encostado à parede, enquanto esperava que ela descesse.
Da igreja saíam os fiéis. Muitos estavam “puros” após comungarem. Outros teriam feito seus pedidos , talvez impossíveis, para todos os santos. De lado do templo, aguardava a moreninha para “pecar “ na penumbra do terreno baldio.
Quando comecei a “tirar o sarro”, antes sempre motivador, percebi que uma parte do meu corpo não obedecia mais ao meu desejo, por mais que a criaturinha, que me tratava tão bem, colaborasse. Cadê a vontade, antes indomável? Por que isso? Que coisa esquisita! O que ela iria pensar de mim? Que vergonha! Insistia em querer... mas nada!
A frase “ A barra vai pesar” não me deixava em paz. Inibia até os meus hormônios. Vetava o meu desejo.
A moreninha, surpresa, disse, sem rodeios nem piedade : tá brocha, é, meu filho???
O AI-5 acabara de cassar a minha ereção, pelo menos naquela noite inesquecível.
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* Esta crônica fará parte de um livro de memória, atualmente em fase de conclusão.

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